Este post inspira-se no artigo publicado em março de 2014 por Sharp e colaboradores na revista Nature Neurology Reviews (leia original aqui).
Nomes complexos são minha especialidade. E este é mais um deles. Lesão axonal difusa (LAD). Você sabe o que é isso, como se desenvolve, quando aparece, como se manifesta e por quê ocorre?
A LAD é produto de um traumatismo cranioencefálico (TCE), quando ocorre um choque, aberto (quando há abertura do crânio) ou fechado (quando não há abertura do crânio), do crânio contra alguma superfície, produzindo lesão cerebral. Exemplos de TCE são quedas com trauma da cabeça, traumatismos cranianos em acidentes de automóveis, o que ocorreu com o piloto Michael Schümacher, ou quando uma bala atravessa o crânio, entre várias outras situações.
O TCE pode produzir lesão cerebral local (como uma contusão, quando há trauma do córtex cerebral com ou sem sangramento, ou a formação de hematomas) ou a LAD.
O cérebro é formado por fibras e neurônios, As fibras são basicamente os axônios, as grandes terminações dos neurônios que trafegam de cima para baixo, de baixo para cima, e de um lado para o outro e de frente para trás, e de trás para frente. O cérebro, e em especial a substância branca, é cheio destas fibras, que o preenchem e formam seus tratos de fibras. Observe abaixo:
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http://sciencedefined.files.wordpress.com/2012/01/brain-dti.jpg |
O que você vê acima é uma imagem em tractografia, ou DTI, de um cérebro, mostrando todos os tratos de fibras que correm o cérebro em todas as direções. São estes tratos que sofrem lesão na LAD.
Um axônios, só para lembrar:
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https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj69p_c6xTGn5KQcrScvIMO9uo1oVHzTOOM72u2W901KWmaCZm8ncK1IAYEYPnmOiT4Q1-zsoLaDaiE8zF4zbxHQMOwBaLXzXiTbIHUkXuqRtvvfSznBwgOBn0ooPR959UwJujdjehsXwAo/?imgmax=800 |
Um axônio pode ser muito grande, e ter vários centrímetros de comprimento, Fora isso, um trato é formado por centenas, por vezes milhares de axônios.
No trauma craniano, são estas grandes terminações, os axônios, que em um mecanismo de aceleração-desaceleração (falaremos mais disso abaixo), sofrem lesão, ou perda da camada de mielina, ou lesão de suas estruturas internas, além de lesão de vasos que passam por ali e suprem os nervos. A força mecânica que impacta sobre estas estruturas causa rotação do eixo dos axônios, o que leva à destruição dos filamentos, o pequeno esqueleto de proteínas, que forma a estrutura interna dos axônios, podendo haver lesão axonal, morte neuronal, inflamação, degeneração local e à distância, e isquemia, perda de suprimento de sangue, por lesão dos vasos sanguíneos. Ou seja, é muita coisa.
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http://weillcornellbrainandspine.org/sites/default/files/concussion-lg.jpg |
Uma bela imagem do mecanismo da LAD é vista acima. Na transição entre a substância branca e a cinzenta (o local mais comum de ocorrência da LAD), o evento de uma desaceleração brusca acaba por levar a rotação das fibras axonais que trafegam pelo cérebro, levando a eventual lesão axonal e hemorragia local por rompimento de estruturas vaculares, vasos.
O que produz a LAD?
A LAD é produzida, geralmente, por um mecanismo de aceleração-desaceleração. E o que é isso??
Vamos falar de duas condições onde a LAD pode ocorrer.
A primeira é quando ocorre um trauma craniano fechado contra alguma superfície, como um choque de umma estrutura contra a cabeça, intenso o suficiente para produzir uma lesão desse porte (quedas com batida da cabeça contra alguma superfície ou contra o chão, traumas com objetos contra a cabeça, e outras situações). Abaixo, um caso de trauma craniano contra uma superfície com o golpe (trauma em direção ao movimento) e contragolpe (a resposta do cérebro, banhado em líquido, à desaceleração brusca).
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http://static.bandbacktogether.com/media/images/2011/12/Coup-or-Contrecoup.jpg |
Já a condição mais comum, e que permitirá entender a primeira, são os traumatismos por acidentes automobilísticos. Falaremos disso agora.
Imagine uma bola de acrílico ou plástico duro, transparente, com água dentro, e dentro da água um material qualquer, denso, e que preencha mais de 3/4 do interior da bola. Consideraremos este um modelo de nossas próprias cabeças, sendo o material o próprio cérebro. Imagine que este material está preso à parte de dentro da bola. Agora, imagine esta bola presa a uma haste de metal, firme, de modo que ela não pule, caia ou saia de sua posição. Coloque esta haste sobre uma superfície com rodas, e faça esta superfície andar por sobre o chão. Acelere o mais que puder, e espere o conjunto bater contra alguma parede. Observe a reação do material dentro da bola, ou seja, o cérebro. Com a aceleração, de acordo com as leis da física clássica (sim, o blog também é física), todo o conjunto estará rodando à mesma velocidade, superfície com rodas (que seria um carro), haste (que seria nosso corpo) e bola com água e o material denso dentro (que seria nossa cabeça com o líquor e o cérebro). Imagine agora uma parada súbita, brusca, uma desaceleração de todo o sistema. Como se comportaria nosso cérebro nessa situação?
Vamos agora imaginar uma situação real, uma pessoa dentro de um carro, acelerando. Imagine que este carro, agora em uma estrada a 100 km/h, sofre uma colisão com outro carro. Ou seja, uma parada súbita, brusca. O pescoço da pessoa não é rígido, mas flexível, e de acordo com a lei da inércia, ele se moverá de acordo com a intensidade da batida. Alerto a todos para que não façam isso em casa!!
Para entender melhor, imagine-se em um carro. O que ocorre quando você acelera o carro? Seu corpo vai para trás, pois este tende a manter o seu estado de repouso, ou seja, sua inércia. E quando ele para, o que ocorre com seu corpo? Ele vai para a frente, pois ele tende a manter, agora, o seu estado de movimento, ou seja a sua inércia.
Obseve abaixo:
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http://www.animations.physics.unsw.edu.au/jw/images/gravity_files/bus1.gif |
Acima, uma pessoa dentro de um ônibus. À esquerda, quando o ônibus acelera, a pessoa tende a se deslocar para trás. Quando o ônibus para, à direita, a pessoa tende a se deslocar para a frente. No dia-a-dia de nosso metrôs, ônibus e carros, a intensidade de deslocamento do corpo é pequena por que a aceleração e desaceleração dos veículos, ou seja, a variação da velocidade em relação ao tempo, também é pequena. É muita física para seu gosto? Tenho certeza que, além de entender mais sobre seu cérebro, você também vai entender por que você é jogado para o lado quando o metrô para bruscamente.
Muito bem. Voltemos ao carro. A variação de velocidade em relação ao tempo em uma batida de carro é enorme, ou seja, a desaceleração (pois o carro para) é grande, e portanto, a intensidade do deslocamento do corpo também será proporcionalmente intensa. Em uma situação extrema, um carro a 100 km/h se chocando de frente com outro carro, dessa vez a 120 km/h na direção contrária, bate a uma velocidade de (100 + 120) km/h, ou seja, 220 km/h, e para quase que instantaneamente, produzindo uma variação de 220 km/h a quase 0 km/h em questão de menos de 2 segundos. Ou seja, uma variação estrondosa. E a cabeça, e consequentemente o cérebro, seguem essa variação de velocidade.
Com esta desaceleração, o corpo vai para a frente, porque ele tem de manter sua condição prévia de aceleração, ou seja, sua inércia (desculpe se soo repetitivo, mas isso é necessário). E o pescoço também vai para a frente, com muita intensidade, o que pode produzir, inclusive, várias lesões do pescoço e da coluna, e da medula, cervical, sobre o que poderemos falar após. A cabeça acaba se deslocando com velocidade intensa, e o cérebro, preso ao crânio, também se desloca, mas em uma velocidade relativamente menor por conta da presença do líquor, do líquido que o banha, e que serve, entre outras funções, como suporte e proteção. Mas o cérebro segue o caminho contrário ao da cabeça, justamente por conta da presença desta líquido. A LAD acaba ocorrendo ou por conta dessa desaceleração, ou mais comumente quando a cabeça, em movimento intenso, choca-se contra a lateral ou a frente do carro, ou contra outra superfície como o chão em caso de aremessamento do corpo para fora do carro, levando a mais um trauma por desaceleração brusca.
Como se manifesta a LAD?
Uma boa parte dos pacientes acaba por entrar em coma após o trauma, em parte pela destruição de várias fibras axonais que comunicam as várias áreas cerebrais. Mas também a inflamação que se segue à lesão dos axônios e ao sangue, inchaço cerebral e pressão alta na cabeça (hipertensão intracraniana) pelo trauma, eventual crise epiléptica pós-trauma, presença de outras formas de lesão e problemas clínicos como infecções, distúrbios de sódio ou cálcio, podem contribuir para o coma e sua manutenção.
Uma tomografia de crânio pode ser normal, ou pode mostrar vários focos de microhemorragias espalhados pelo cérebro.
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http://www.learningradiology.com/caseofweek/caseoftheweekpix2008-2/cow315-1lg.jpg |
Os pontos esbranquiçados dentro do material acinzentado (que é o próprio cérebro) deste paciente com LAD são hemorragias pequenas.
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https://encrypted-tbn1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcTwGgV3azB3g2fFcajkPRgCbSkJxp9RWFQyYucr-fweEsg6HbK6 |
Já este paciente não teve tanta sorte, e a quantidade e tamanho dos focos de sangramento foram grandes. Todas estas "bolas" esbranquiçadas, com um halo negro de inchaço, edema, ao redor são focos de sangramento.
Os pacientes que saem do coma costumam ter sequelas cognitivas que podem variar de intensidade a depender de muitos fatores, como intensidade do trauma, presença de outras lesões cerebrais, tamanho da lesão axonal e outros. Sequelas ocorrem mesmo nos casos mais "benignos", como alterações de memória, de raciocínio, de velocidade de processamento de informação, abstração, a problemas psíquicos, como transtornos de estresse pós-traumático, transtornos de ansiedade e depressão.
A ressonância mostra melhor as lesões, especialmente uma sequência chamada de Gradiente Echo (GRE ou T2*), onde o cérebro aparece acinzentado, e focos de sangramento aparecem bem negros (o problema dessa sequência é que ela nãoo distingue tão bem sangue de depósitos de cálcio, as calcificações, e muitas vezes, na dúvida, uma tomografia deve ser usada pois faz bem essa diferenciação).
Observe abaixo:
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http://api.ning.com/files/py5E2iOfdI9DJl*GBYp-eojiwrquqxbq0QldyYy8oR3EqECpnARohNiqCUF9QSkaOg3Gcx-Yvdu*ynmItk0XTDMhK1Ua06IS/RadswikiDiffuseaxonalinjuryGRE002.jpg?width=512&height=512 |
Com base no que eu falei acima, onde estão os focos de sangramento nesta ressonância em GRE?
Bem, é isso. Espero que tenha entedido.
Até o próximo post.