Este post é uma adaptação do artigo Aristotle on the Brain, de Charles G. Gross, publicado na The Neuroscientist, 1995.
A biologia foi inventada por Aristóteles, um dos maiores filósofos da Grécia Antiga, contemporâneo e discípulo de Platão, e parte da tríade filosófica clássica (Sócrates - Platão - Aristóteles). Considerado o pai da anatomia comparativa (a comparação de órgãos e sistemas entre espécies, a fim de avaliar a evolução e as funções dos órgãos estudados), além do primeiro embriologista (embriologia é o estudo da formação do embrião de uma dada espécie, como a humana, da fecundação até o desenvolvimento fetal completo, além de suas doenças e malformações), o primeiro taxonomista (a taxonomia preocupa-se com a classificação dos animais, que pode ser em filos, classes, ordens, gêneros e espécies, conforme Carolus Linnaeus [1707 a 1778], o primeiro taxonomista moderno, cuja classificação é usada até hoje), o primeiro evolucionista (sim, Aristóteles já considerava teorias sobre evolução de espécies séculos antes de Charles Darwin), o primeiro biogeógrafo, e o primeiro estudioso sistemático do comportamento animal. Ufa!
Cerca de 25% do que Aristóteles escreveu, ele o fez sobre a biologia e os seus ramos. E assim, ele se tornou distinto de seu mentor, Platão. Fora isso, Aristóteles também escreveu sobre lógica, metafísica, arte, teatro, psicologia, economia, e política. Suas ideias sobre assuntos em física e biologia (incluindo a biologia humana) predominaram na idade média, sendo posteriormente suplantadas por novas ideias e conceitos derivados da experimentação e dos estudos modernos.
Aristóteles não era perfeito, claro! E um dos seus maiores erros deveu-se justamente às suas ideias no campo da neurociência. Ele negava o controle do cérebro sobre as emoções e os movimentos do corpo, e acreditava que esta função era do coração.
Mas por que? Bem, tudo começou bem antes de Aristóteles...
A filosofia já se preocupava com o funcionamento do mundo bem antes de Aristóteles. Filósofos pré-Socráticos, como Tales de Mileto e Anaximandro, por exemplo, no século 6 a.C. já imaginavam um universo dominado por leis fundamentais que poderiam ser entendidas pela razão. Um século após, a filosofia muda-se de Mileto na Grécia para três cidades distantes entre si, mas próximas do ponto de vista do pensamento filosófico, Crotona, no sul da Itália, Agrigentum, na Sicília, e Cos, na Turquia. Crotona, o local mais antigo, era local de moradia de um dos seus maiores habitantes, Alcmeon (em Crotona estava situada também a irmandade Pitagoreana, baseada nos ensinamentos de Pitágoras).
Alcmeon foi o primeiro a considerar o cérebro o local de geração das sensações e da cognição. Provavelmente, ele também foi o primeiro a realizar dissecções para responder a questões anatômicas. Alcmeon estudou profundamente a visão (como poderia ser estudada na época). Ele descreveu os nervos da visão, os nervos ópticos, e considerava que a luz adentrava por eles (é, mais ou menos!). Alcmeon estudou os olhos, e abrindo-os, descobriu que dentro deles havia água (na verdade, há um líquido chamado de humor aquoso). Ele ainda disse que dentro dos olhos havia luz (fogo), e que esta luz era necessária para visão (estas ideias, infelizmente equivocadas, embasaram as teorias da visão que persistiram pela Idade Média e pela Renascença). Essas ideias, no entanto, começaram a ser questionadas e posteriormente dadas como infudadas no meio do século 18.
Entre vários outros filósofos pré-Socráticos, que expandiram as ideias de Alcmeon sobre o cérebro, foram Demócrito, Anaxágoras e Diógenes.
Demócrito ensinava que tudo no Universo era feito de átomos (do grego, a, ausência, e tomos, corte, ou seja, impossível de ser dividido) de tamanhos e formas diferentes. A psique (alma e mente), segundo ele, era feita dos átomos mais leves, mais esféricos e mais rápidos, e apesar de existirem no corpo todo, eram mais comuns no cérebro. Átomos levemente menos sofisticados, de acordo com Demócrito, existiam no coração, tornando-o o centro das emoções. Átomos ainda menos sofisticados existiam no fígado, o que o tornava o centro do apetite e da luxúria (ou seja, o cérebro ainda era visto com um órgão sem muitas qualidades, e boa parte de suas ações era relegada a outros órgãos). Platão, no entanto, utilizou estes ensinamentos de Demócrito para desenvolver a hierarquia das partes da alma, onde para ele não havia dúvidas da supremacia do cérebro sobre os outros órgãos, como ele mesmo disse, "é a parte mais divina de nós, e manda em todo o resto".
Empédocles, filósofo de Agrigentum, ensinava que, diferente de Alcmeon, o sangue era nosso meio de pensamento, e o grau de inteligência dependia da composição do sangue, o seja, o coração era o órgão central do pensamento, e o local das doenças mentais, já que este é o órgão que bombeia o sangue.
Essa ideias de colocar o coração como centro das emoções e do pensamento já vinham da Índia, Egito, Mesopotâmia e Babilônia, bem antes dos gregos. Essa visão ainda era corrente, até o século 20, entre povos americanos do Novo México que afirmavam pensar com o coração (fonte).
Já a ilha de Cos, na Turquia, era a casa de Hipócrates, considerado o pai da medicina. No entanto, pouco sobreviveu de seus escritos da época, perfazendo o Corpus Hippocraticus, que contem mais de 60 tratados, que variam muito em termos de estilo e nível técnico, não tendo sido escritos por um mesmo autor, e nem mesmo na mesma ápoca. Assim, não se sabe exatamente quais textos foram realmente escritos por Hipócrates ou por seus discípulos.
Os hipocráticos consideravam o corpo humano divino, e assim não lhes era permitido fazer dissecções, sendo seus conhecimentos de anatomia pequenos. Procuravam sempre explicações naturais para os acontecimentos através de observações e estudos de casos (os pacientes que lhes eram solicitados atender). O trabalho hipocrático mais famoso para a neurologia é o "Sobre a Doença Sagrada", a epilepsia. Assim abre o tratado hipocrático:
Eu não creio que a Doença Sagrada
seja mais divina ou sagrada do que qualquer
outra doença, mas do contrário, tem
características específicas e uma causa definida...
É minha opinião que aqueles que primeiro
chamaram a doença de 'sagrada' eram os tipos de
pessoas que agora chamamos de curandeiros,
médicos espirituais, e charlatães.
Estes são exatamente as pessoas que fingem
ser piedosas e particularmente sábias.
Através da invocação de um elemento divino
elas são capazes de demonstrar sua própria
incapacidade em dar um tratamento adequado e
assim chamaram a esta doença 'sagrada' para acobertar
sua ignorância sobre sua natureza.
O autor não duvidava que o cérebro era o local desta doença. Com relação às funções do cérebro, a clareza de linguagem era semelhante:
Deve ser geralmente conhecido que a fonte
de nossos prazeres, felicidade, riso, e diversão,
assim como de nossos ressentimentos, dores,
ansiedade, e lágrimas, não é nenhum outro além do
cérebro. É especialmente o órgão que nos permite pensar,
ver, ouvir, e distinguir o feio do belo, o mau do bom,
o agradável do desagradável... É o cérebro, também, que
é o local da loucura e do delirium, dos medos e fobias que nos
atormentam, frequentemente à noite, mas algumas vezes mesmo
de dia; é lá que fica a causa da insônia e do sonambulismo, dos
pensamentos que não virarão ações, dos trabalhos esquecidos, e das
excentricidades.
Além do mais, o autor afirma que nem o diafragma, nem o coração possuem quaisquer funções mentais, como foi clamado por alguns. Qual então é a causa da epilepsia? O autor continua, afirmando que ela ataca somente as pessoas com excesso de fleugma (um dos humores da teoria de Galeno) e muco, ou seja, as pessoas fleumáticas, indiferentes e apáticas.
Caso... rotas para a passagem de
fleugma vindo do cérebro sejam bloqueadas,
esta adentra os vasos sanguíneos...
o que causa afonia, sensação de sufocamento,
muita babação da boca, os dentes se trancam, e ocorrem
movimentos convulsivos das mãos; os olhos ficam fixos,
o paciente fica inconsciente e, em alguns casos, defeca.
Agora que você tem uma pequena base filosófica dos tempos pré-Aristotélicos, vamos a Aristóteles no próximo post.
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Médico Neurologista