A doença de Alzheimer pode ser uma experiência indolor fisicamente, mas o é espiritualmente, pois a perda de si mesmo é a maior perda que uma pessoa pode sofrer. Perder-se em uma vastidão de espaços vazios, não recordando aqueles que nos cercam, e talvez pior, não recordando a si mesmo. O trágico encontrando-se com o nostálgico.
Ao mesmo tempo, perder-se em dúvidas, não ter a capacidade de encontrar-se quando a mente funciona de forma adequada e as memórias insistem em nos pressionar em direção a um caminho que não conhecemos, também pode ser considerada uma forma de sofrimento espiritual. Mas há semelhança entre a perda real de si próprio e a perda das convicções e dos alicerces que outrora sustentavam nossa vida?
É nesse contexto que dois personagens díspares mas semelhantes em vários aspectos se vislumbram. Aquele, um renomado professor de literatura assolado pelo pior pesadelo de um pensador, a perda de suas ideias. Este, um médico psiquiatra que reluta em atender pacientes com a doença de Alzheimer pelo passado não analisado e não trabalhado de uma perda para a própria doença.
A estória percorre estradas sinuosas mas bem lapidadas ao descrever a vida pessoal do médico, demonstrando que todos temos sentimentos e desejos, até mesmo aqueles de nós que se consideram acima do bem e do mal. Demonstra também quão frágil é nosso mundo, e faz um paralelo, intencional ou não, entre a perda real, cognitiva, de si mesmo, e a perda metafórica, a perda do chão e de nosso convicções, quando algo de novo, inesperado, ocorre em nossas vidas. No caso do professor, a doença; no caso do médico, bem, leia o livro.
A autora Flávia Christina Simonelli, acerta em cheio ao descrever, no percurso da narrativa, os cuidados com estes doentes em vários estágios de sua evolução. Demonstra também os "dos and don'ts" do relacionamento com estes pacientes, o modo de agir frente a situações de agressividade e desespero, e mais que tudo, observa que somente o amor supera as barreiras da falta de comunicação.
Narrativa fluida, estória comovente. Personagens bem apresentados e construídos.
Uma boa prosa para uma época quando escutar tornou-se exceção, quando o eu vale mais que o nós, e quando a doença de Alzheimer, que nos obriga a nos fechar em nosso mundo mesmo contra nossa vontade, está ficando cada vez mais frequente.
Aconselho sua leitura.
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Comente na minha página do Facebook - Dr Flávio Sekeff Sallem,
Médico Neurologista