sábado, junho 11, 2011

Por que a perna sobe quando se bate no joelho com um martelo?

Um neurologista é um médico especial, por que usa vários aparelhos que pertencem a outras especialidades, como oftalmologistas (o oftalmoscópio, para ver o fundo de olho) e otorrinolaringologistas (o otoscópio, para ver dentro do ouvido), fora é claro o uso do estetoscópio, arma principal do clínico além da visão, da audição e do tato, para ver o coração, os pulmões, e outras coisas mais que nós neurologistas procuramos. Mas há um aparelhinho simples, que somente os neurologistas usam, que é o martelo de reflexos. E há toda uma fantasia em cima desse martelo, justamente por causa da resposta normal do teste do reflexo patelar obtido ao se bater o martelo no tendão do joelho, observando-se o levantar da perna. Quantos de nós não achamos engraçado a perna levantar quando se bate no joelho? Mas saibam que esse é um sinal muito importante.

Antes de falarmos mais, só gostaria de lembrar ao leitor que há martelos especiais para isso, e não é qualquer objeto que pode ser usado para testar o reflexo, por que pode haver lesão do joelho dependendo do objeto usado. Se você quiser testar seu reflexo, sente em uma cadeira alta, deixe as pernas pendentes, e com o dedo indicador ou um objeto mole (especialmente de borracha) bata rápido e levemente no tendão (o cordão grosso e elástico logo abixo o joelho) e você verá a perna levantar.

Em primeiro lugar, há vários tipos de martelos, desde os mais simples, como o de Taylor, até os mais sofisticados. Como existem vários tamanhos de braços e pernas, e um tendão, que é a inserção do músculo no osso, pode ser maior em um lugar que no outro (o tendão do flexor longo do polegar é pequeno em comparação com o grosso tendão de Aquiles, no calcanhar), há também a necessidade  de vários tamanhos de martelos. E há martelos para crianças e adultos. Aqui vão as fotos de alguns martelos.

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Há mais martelos parecidos ou diferentes destes. Eu mesmo tenho 5 martelos comigo, e os carrego sempre que vou ao consultório.

Bem, mas afinal de contas, qual a importância disso?

Muito bem, vamos falar rapidamente de algo interessante chamado de arco reflexo. Imagine-se na cozinha de sua casa, e você vai pegar algo em cima do fogão, que acabou de ser apagado (ainda está quente). Sua mão sem querer encosta na boca quente do fogão, e você imediatamente retira a mão do fogão. Isso é um arco reflexo. Na verdade, arco reflexo é uma via rápida, que não depende do cérebro em si mas sim dos nervos e da medula. Algo acontece na periferia (você se queimou, e a periferia é sua mão) que estimula um nervo sensitivo (o calor e a dor que ele produz), levando esta informação à medula que transmite a informação rapidamente aos neurônios motores responsáveis por mover a extremidade em questão (sua mão, que tem de ser retirada dali o mais rápido possível). E o mais incrível, isso ocorre em questão de milissegundos (frações minúsculas de segundo), transformando o arco reflexo em uma das respostas mais rápidas da natureza. E isso ocorre em todos os animais mais complexos ou que tenham sistema nervoso, e o homem não é exceção.

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Os neurônios motores estão em íntimo contato com os sensitivos na medula, e um sabe do outro o que está acontecendo na periferia.

Bem, e o reflexo que se examina no consultório? Ele também é um arco reflexo? A resposta a essa pergunta é um retumbante SIM! Mas neste caso, o estímulo não é calor ou dor, mas o estiramento (ou seja, a rápida compressão) de um tendão muscular, que leva a uma resposta sensitiva diferente, dita proprioceptiva, que leva a uma contração reflexa do músculo estimulado (estirado).

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Observe que a via é parecida com o caso da queimadura no fogão, por que é quase a mesma coisa. Só que a via sensitiva é outra, só isso de diferente.

Mas para que examinar reflexos? Qual a importância deles?

Hum, entramos na parte boa da história. Vamos lá. O exame de reflexos é a parte mais importante do exame neurológico, pela informação que dá e pela objetividade. Testam-se reflexos em vários músculos do corpo, e em teoria qualquer músculo pode ter seu reflexo testado, mas é claro que isso seria impraticável com o tempo que dispomos e a quantidade de pacientes que temos que ver, além de ser inútil. Testam-se os seguintes músculos, de cada lado, comparando-se um lado com o outro:

1. Bíceps (bicipital) - músculo da parte anterior do braço
2. Tríceps (tricipital) - músculo da parte posterior do braço
3. Peitoral maior (peitoral) - músculo do peito
4. Cúbito e Rádio-pronador - músculos do antebraço
5. Flexor dos dedos - também da parte anterior do antebraço
6. Adutores da coxa (adutor) - na parte de dentro do joelho
7. Flexores da coxa (hamstrings) - reflexos da parte posterior do joelho, tanto na parte de fora como na de dentro
8. Quadríceps (patelar) - na patela, ou rótula, ma parte da frente da perna
9. Tríceps sural (aquileu) - no calcanhar

O que nos diz um exame de reflexos?

Se o paciente não apresenta sintoma nenhum e o exame está normal, mas os reflexos estão globalmente diminuídos ou muito vivos, isso pode ser normal, pois há variações de paciente para paciente.

Em um paciente com doença neurológica, o exame de reflexos nos ajuda a dizer se a doença é no cérebro, na medula ou nos nervos/raízes/plexos.

Em caso de doença cerebral, geralmente os reflexos esão aumentados de um lado do corpo, podendo estar diminuídos de um lado na instalação de uma lesão aguda, como um derrame. Em caso de doenças de progressão lenta, como um tumor, os reflexos de um lado (do lado contrário à lesão - vamos ver o porquê disso em um artigo posterior) podem estar normais ou vivos/exaltados.

Em caso de doença medular, os reflexos podem estar abolidos/ausentes se a doença é aguda (como em um trauma medular ou um derrame de medula - sim, isso existe!), ou bem vivos/exaltados em casos de doenças de lenta evolução ou após semanas/meses de um lesão medular. Dependendo do nível da lesão (pescoço, dorso ou lombar), podemos ter um ou mais reflexos alterados, e isso serve para dizer a localização de uma lesão, pois cada reflexo é servido por uma raiz diferente que sai da medula. Assim, o reflexo bicipital é servido pelas raízes da 5ª e da 6ª vértebras cervicais, e portando uma lesão abaixo deste nível, por exemplo, ao nível da 2ª vértebra torácica, não causará lesão e deixará o reflexo bicipital normal. Já neste caso, o reflexo patelar estará exaltado/vivo, por que a lesão desconectou a medula do cérebro, ou causou lesão nas vias que vêm e vão da medula para o cérebro, e levou à exaltação dos reflexos.

Já em caso de doença no sistema nervoso periférico (raízes, plexos e nervos) é que o negócio fica mais interessante, por que aqui o exame dos reflexos pode até dizer qual raiz ou mesmo qual nervo que foi lesado. E nestes casos, como estarão os reflexos?
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Você sabe?
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Ora, uma lesão de uma raiz, plexo ou nervo leva a lesão de uma das vias do arco reflexo. O arco reflexo, como você pode ver nas figuras acima, tem uma via que entra e outra que sai da medula. Ou seja, respectivamente, uma via aferente e uma eferente. Caso seja lesada uma destas vias, o que ocorre é como se houvesse duas estradas de uma cidade para outra, e uma das vias ficasse bloqueada. O que ocorreria? Não passaria mais carro ali. Logo, se há lesão de uma das vias, ou a que leva ou a que traz a informação, o que há é a perda ou a diminuição dos reflexos! E como cada reflexo depende de um nervo e de uma ou mais raízes, a perda de um reflexo em um braço ou uma perna pode falar a favor de lesão em uma raiz, um plexo (que é o conjunto de nervos que saem de várias raízes) ou de um nervo.

Assim, pacientes que tiveram trauma de parto por conta de fórceps podem ter o braço fraco e atrofiado por que houve lesão das raízes e dos plexos que vão para o braço. Nestes pacientes os reflexos no braço lesado estarão abolidos por conta desta lesão. Um paciente com lesão do nervo musculocutâneo, ramo do mediano e que serve o reflexo bicipital, terá o reflexo bicipital do lado da lesão diminuído ou ausente, por conta disso.

Há algum tempo, vi um amigo obeso que havia ficado horas sentado. Ele estava dirigindo sem parar havia quase 20 horas, e quando parou teve fraqueza da coxa e já não conseguia ficar em pé, além de muita dor. Eu o examinei e vi que o reflexo patelar do lado doente estava ausente/abolido, ou seja, a perna dele não mais levantava quando eu batia com o martelo de reflexos no joelho, indicando lesão de um nervo importante, o nervo femoral. Logo, o exame de reflexos disse o nervo afetado, por que os outros reflexos daquela perna estavam normais. Se os outros reflexos estivessem alterados, eu não pensaria em doença de nervos ou plexo, mas em outra coisa, como algo na medula ou no cérebro.

Bem, espero que com esta explicação longa, você tenha entendido o porquê que o neurologista usa o martelo de reflexos. Avaliar os reflexos de um paciente com doença neurológica é uma arte, e sua interpretação correta pode ajudar bastante na localização da lesão, e por último, no diagnóstico.