sábado, junho 22, 2013

Esclerose múltipla - Um pouco de história

Este post baseia-se em um artigo publicado por Lincoln MR e Ebers GC na famosa revista Annals of Neurology em setembro de 2012. 

O texto refere-se ao provável primeiro caso de EM descrito como tal na literatura. No entanto, também versa sobre o uso de uma terapia na época comum, a eletricidade. Hoje, o uso de eletricidade no tratamento de doenças neurológicas limita-se somente ao uso de estimulação elétrica cerebral e estimulação magnética transcraniana, técnicas conhecidas e disseminadas, mas com indicações e contraindicações bem delimitadas. 

Por isso, o blog Neuroinformação adverte: Não brinque nunca com eletricidade ou corrente elétrica. Os riscos à saúde, ou mesmo óbito, não valem qualquer benefício. 

Até meados do século XIX, a esclerose múltipla (EM), ou chamada na época esclerose em placas (como ainda é chamada na literatura francesa) era considerada doença rara, e os pacientes que apresentavam os sintomas da doença eram classificados como outras afecções (ou seja, houve vários casos de EM que não foram diagnosticados como EM). 

Eu próprio tenho uma tradução brasileira de um livro de neurologia de  L. Rimbaud, de 1938, que traz a EM como esclerose em placas ou esclerose pláxica (naquela época, diferente de hoje, a neurologia brasileira era toda de origem francesa; hoje é praticamente anglo-saxônica) como doença comum (refere-se como a segunda causa mais comum, para aquela época, de doença da medula espinhal depois da sífilis) e recebeu  atenção em 17 páginas do tratado. Hoje há tratados devotados à enfermidade com mais de 800 páginas (mais de 40 somente com a história da doença). 

Deve-se a Jean-Martin Charcot em 1866 a definição da EM como doença distinta. Mas há casos de provável esclerose múltipla descritos em 1824 e 1822 (ou seja, na época da independência do Brasil). 

Os autores deste artigo descrevem um caso que não havia sido reconhecido à época, de 1757 (32 anos antes da Revolução Francesa), tendo chamado a atenção de um dos pais da independência americana, e descobridor da eletricidade, Benjamin Franklin.

Em 1757, um médico escocês chamado Robert Whytt recebeu uma carta de um senhor Patrick Brydone sobre o uso miraculoso de eletricidade para curar uma paciente paralítica (daí o porquê do interesse de Franklin, provavelmente). A doença desta mulher de 33 anos é consistente com EM. O artigo foi publicado na revista Philosophical Transactions (veja aqui), muito influente à época, e que existe até hoje (desde 1665). 

A paciente chamava-se Elizabeth Foster, e iniciou seus sintomas aos 18 anos de idade (estava com 33 à época), quando teve um quadro febril com alterações respiratórias. Em julho de 1755 (talvez com 31 anos de idade), ela teve novamente o episódio de febre, mas desta vez acompanhado de sintomas neurológicos com paralisia, ora do braço, ora da perna, do lado esquerdo do corpo. Ela ficou assim até 1756, quando começou a melhorar. 

Novo ataque logo ocorreu em agosto de 1756, com perda de movimento e sensações do lado esquerdo do corpo, completamente. Acompanhando o quadro, iniciou-se um tremor da cabeça, dificuldades à fala (disartria), perda de visão do lado esquerdo com perda de definição de cores deste lado (acromatopsia), e surtos de frio intenso.

O já mencionado Dr. Brydone sugeriu à paciente um tratamento hoje impensável, o uso de eletricidade para aliviar seus sintomas. A paciente recebeu várias descargas elétricas de grande intensidade (segundo o autor), e após isso sentiu-se melhor, com melhora de algumas sensações do lado esquerdo. A paciente chegou a receber 200 choques em um só dia (algo que na minha opinião é assustador, haja vista a gravidade de um choque elétrico).

O tremor da cabeça acabou melhorando, e ela conseguiu ficar de pé. A paciente continuou a receber os choques por mais alguns dias, tendo no terceiro dia recebido um total de 600 choques. Com novos sintomas após uma gripe, o uso de eletricidade (segundo o autor) resolveu novamente suas queixas. A paciente ficou bem até a última descrição em 9 de janeiro de 1758.

Os autores do artigo afirmam que o caso desta paciente representa o primeiro caso convincente de EM na literatura médica. Apesar disso, há algumas características do caso que são atípicas para EM, como o início após uma doença febril (isso é mais comum em duas outras doenças auto-imunes, a síndrome de Guillain-Barrè e a ADEM, ou encefalomielite disseminada aguda), piora após outra doença febril, piora dos sintomas com o frio (na EM, é mais comum a piora com o calor ou com banhos quentes, ao que chamamos de fenômeno de Uhthoff). Os autores, no entanto, não conseguem explicar a resposta da paciente à eletricidade, algo impensável hoje (pelo risco e perigo de morte com choques elétricos, como é sabido), e sugerem que isso esteja coincidentemente relacionado às melhoras e recaídas da forma mais comum de EM, a forma remitente-recorrente (EMRR).

Os autores sugerem classificar o caso como altamente provável para EM, pela falta de exame físico, pela falta de uma melhor descrição do caso, e é claro, pela inexistência, à época, de exames que confirmassem (ou descartassem) a doença. 

Benjamim Franklin reagiu à leitura do artigo à época com uma resposta escrita à revista, ele próprio tendo tratado pacientes paralíticos com eletricidade, observando melhora (segundo Franklin, há mais de 200 anos) do movimento dos membros que receberam o choque, porém efêmera, pois os pacientes após receberem os choques e acharem-nos muito intensos, desistiam do tratamento e voltavam com a paralisia. Não sabemos quais causas de paralisia eram essas, e como o uso de eletricidade poderia melhorá-las.

Desviando um pouco do foco deste post, eletricidade foi usada como terapia extensivamente nos séculos XVIII e XIX, com curas de paralisias tendo sido relatadas (causas das paralisias?). No entanto, a falta de seguimento destes casos nos impede de saber se algum deles teve melhora permanente ou somente temporária. 


Síndrome de Lennox-Gastaut

Em 1950, dois autores (Lennox e Davis) descreveram um padrão de ondas lentas no eletroencefalograma (EEH) (2 ciclos por segundo ou 2 Hz [Hz significa Hertz], diferente da frequência normal no EEG de 9 a 11 Hz) associado a retardo mental e tipos específicos de crises epilépticas (crises tônicas, onde há contrações sustentadas dos membros, crises atônicas, onde há queda com perda da contração muscular normal, crises mioclônicas, com abalos [mioclonias] musculares, e crises de ausência atípica, onde há alterações graves de consciência com abalos, diferentes das crises de ausência típica encontradas em crianças).

Em 1966, o famoso epileptologista francês Henri Gastaut (veja figura abaixo) descreveram a síndrome inicialmente descrita por Lennox e Davis em 100 pacientes com os mesmos achados de EEG. A esta síndrome, chamou-se inicialmente encefalopatia epiléptica da infância com pontas-ondas lentas difusas (sim, sei, é um nome difícil, mas vamos tentar explicar).

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Acima, uma fotografia de Henri Gastaut. 

Encefalopatia, como já visto em vários posts deste blog, é uma doença crônica ou aguda do cérebro. Epiléptica porque há crises epilépticas como manifestações principais da síndrome. O termo ponta-onda designa um achado muito comum em EEG’s de pacientes com epilepsia, denotando a onda de excitação/inibição cerebral das crises epilépticas (ponta e onda, onde a ponta é maior e mais rápida, e a onda, que vem depois, menor e mais arredondada – veja abaixo). A lentidão, como já visto, advém do fato de estas pontas-ondas terem frequência de 2 por segundo (ou 2 Hz), e são difusas porque estão presentes em todo o traçado do EEG.

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Acima, o traçado eletrográfico de uma criança com SLG. Observe as pontas, traços finos e rápidos em todo o traçado, seguidas de ondas, mais lentas e arredondadas. Cada espaço entre duas linhas verticais delimita 1 segundo. Observe que há rigorosamente 2 a 3 destes complexos ponta-ondas por segundo (basta contar quantos complexo há entre duas linhas verticais) ou 2 a 3 Hz. 

Posteriormente, a síndrome recebeu o nome de síndrome de Lennox-Gastaut (SLG), em homenagem aos seus descritores. A SLG é classificada como uma epilepsia generalizada, sem foco definido, de causa conhecida ou desconhecida (criptogênica).

A SLG constitui-se em uma forma grave de encefalopatia epiléptica, e pode desenvolver-se em cerca de 30% dos pacientes a partir da síndrome de West, descrita no post anterior. As crises podem ocorrer no sono, com o paciente acordado (e as crises atônica podem levar a queda súbita ao chão), além de retardo de desenvolvimento mental. Alguns pacientes podem ter lesões cerebrais difusas.

A SLG não é uma doença, mas uma síndrome, e como a síndrome de West, pode ocorrer por conta de várias causas diferentes, desde lesões cerebrais a casos sem causa definida, apesar de uma investigação ampla.

Ocorre mais em meninos, geralmente se inicia entre os 2 e 8 anos de idade, e raramente ocorre depois da infância. É responsável por 5% das epilepsias em todas as idades, e por 10% das epilepsias em pessoas abaixo de 15 anos de idade.

Em 1/3 dos casos, não há história alguma de lesão cerebral, assim como não há, ainda, evidência de predisposição genética. Os 70% restantes relacionam-se a danos cerebrais, principalmente durante o período pré-natal ou neonatal (logo após o nascimento), como incompatibilidade de sangue (grupo ABO ou Rh), prematuridade e problemas relacionados a isso (uma minoria dos prematuros, deve-se ressaltar, evolui para a SLG), trabalho de parto prolongado, circular de cordão, anóxia perinatal, malformações cerebrais (a principal é a esclerose tuberosa, ou doença de Bourneville). Outras causas pós-natais são infecções cerebrais, como meningites e encefalites, doenças metabólicas do cérebro, derrames em neonatos (em geral por problemas de parto), hipoglicemia grave, e outras causas.

Os vários tipos de crises ocorrem na maioria dos pacientes. Crises de queda (crises atônicas ou astáticas), alterações de comportamento, alterações mentais e distúrbios de personalidade podem ser sintomas iniciais da síndrome. O retardo mental é invariável, podendo ser mais ou menos grave dependendo da idade de início da síndrome (casos mais tardios apresentam alterações mais leves de cognição). O exame neurológico pode ser normal em 17% dos pacientes.

O diagnóstico é clínico, pela tríade de vários tipos de crises, retardo mental e padrão típico do EEG. Como a SLG não é uma doença, a causa será determinada pela história clínica, pelo exame físico, e por exames laboratoriais e de imagem que o neuropediatra julgar necessários.

Com relação ao tratamento, há técnicas farmacológicas (com medicações) e não farmacológicas, com várias drogas disponíveis. No entanto, o tratamento síndrome não será discutido aqui, e reservaremos posteriormente um post para falar das mais diversas formas de tratamento de epilepsias.