segunda-feira, novembro 10, 2014

A neurologia e Aristóteles 2

Leia primeiro o post anterior, A Neurologia e Aristóteles, para poder entender melhor este.

Apesar de suas visões equivocadas a respeito do cérebro, Aristóteles na verdade facilitou o desenvolvimento posterior do estudo dedste órgão. Sua ênfase na importância da dissecção aliada ao seu prestígio encoragou outros a realizar estudos anatômicos. 

O estudo sistemático da neuroanatomia humana começou com o Museu de Alexandria, criado por Demétrio de Falero, filósofo grego, e inaugurado pelo sucessor de Alexandre o Grande, Ptolomeu I no século 4 a.C. (leia mais sobre o Museu e a Biblioteca de Alexandria aqui), e que teve influência de Aristóteles. O museu destacava-se como um instituto estatal de pesquisa, com mais de 100 professores vivendo no local com gastos e salários pagos pelo estado. Havia salas de palestras e estudos, um observatório astronômico, um zoológico, um jardim botânico, e salas de dissecção e operação. Dentro do Museu estava a Biblioteca de Alexandria, 

O Museu era praticamente uma continuação do Liceum de Aristóteles, pois seu fundador, Ptolomeu I, general e amigo de infância de Alexandre o Grande, fora discípulo de Aristóteles, e na época havia se interessado por biologia. Além disso, Demétrio, citado acima como um dos organizadores do Museu, fora estudante de Teofrasto, colaborador de longo tempo de Aristóteles e seu sucessor como diretor do Liceum. E além disso ainda, o cerne da coleção da Biblioteca para ter sido organizado por Demétrio a partir, em parte, da própria coleção de Aristóteles. Fora isso, o ex-imperador de Alexandria, o próprio Alexandre, já morto nessa época, ele próprio havia sido discípulo de Aristóteles como visto no post anterior.

Assim, nas sombras de Aristóteles, grandes anatomistas como Herófilo e Erasistrato começaram o estudo sistemático do corpo humano, particularmente do sistema nervoso (só como curiosidade, atrás de sua cabeça, mais ou menos em uma protuberância que todos nós temos na porção posterior, e claro dentro do crânio, há uma confluência de veias cerebrais, chamada de tórcula de Herófilo). 

Estes anatomistas forneceram os primeiros relatos acurados do cérebro humano, incluindo os compartimentos de líquor, os ventrículos. Eles assim não mais questionavam o papel central do cérebro nas sensações, pensamentos e movimentos. Herófilo, inclusive, afirmava que um dos ventrículos (leia mais sobre os ventrículos aqui), o quarto (IV) ventrículo, era o centro de comando do cérebro. 

O interesse em anatomia em Alexandria no século 2 a.C. deveu-se à facilidade com que dissecções abertas e sistemáticas do corpo humano podiam ser realizadas na região. Os gregos, em especial os Hipocráticos, temiam a dissecção por considerarem o corpo humano sagrado. 

O governo de Alexandria era um governo ditatorial que queria se glorificar através de suas conquistas científicas, dando suporte completo aos seus professores, entre eles Herófilo e Erasistrato. Além disso, Alexandria encontrava-se no Egito, bem longe da Grécia, e local onde dissecções com o intuito de mumificação já eram realizadas há séculos, ou seja, a prática já estava arraigada na cultura local. Mas os dissecadores gregos nunca, ou provavelmente nunca, entraram em contato com os embalsamadores egípcios pelo abismo social que os separava. Além disso, as atitudes filosóficas em relação à morte e ao corpo humano morto estavam mudando na época (Aristóteles próprio afirmava que, após a morte, o corpo não passa mais de uma estrutura física sem direitos e sensações).

Além disso, pasmem, em Alexandria praticavam-se vivissecções humanas, ou seja, dissecções em pessoas vivas, com propósitos científicos (lá foi o primeiro e provavelmente o único local no mundo antigo onde isso era possível). 

Como fala Celso, historiador Romano da medicina

É assim necessário (para os estudantes de medicina)
que dissequem os corpos dos mortos e examinem suas vísceras
e intestinos. Herófilo e Erasistrato, eles dizem, faziam isso
do melhor jeito possível quando abriam homens ainda vivos,
criminosos fora das prisões, encaminhados pelos reis.  E enquanto ainda
respiravam, eles examinavam aquelas partes que a natureza antes
havia deixado escondidas...
Não é cruel, como a maioria das pessoas coloca, que remédios para
pessoas inocentes de todos os tempos devam ser procurados
no sacrifício de pessoas culpadas de crimes, e somente de algumas destas
pessoas. 

No entanto, tirando durante o nazismo na Alemanha, a vivissecção não mais seria realizada de forma sistemática. Até a dissecção de cadáveres humanos desapareceu no Ocidente até ser revivida posteriormente durante a Idade Média nas universidades, e então somente para fins forenses, nem médicos e nem tampouco científicos. 

O debate entre o coração e o cérebro como local do pensamento continuou no mundo Árabe, depois na Idade Média e mesmo na Renascença (devo lembrar a você que vários verbos que  dizem respeito a nossas funções mentais e que têm origem na língua portuguesa arcaica, ainda vislumbram essa dicotomia coração-cérebro, como acordar, discordar e recordar. Todos os três possuem o termo latino Cordis, que quer dizer coração!). O grande médico árabe, Ibn Sina (ou Avicenna, no linguajar ocidental), juntou os dois em uma só teoria, colocando as sensações, cognição e movimentos no cérebro, que, segundo ele, era controlado pelo coração. Da mesma forma, enciclopedistas judeus medievais consideravam que "o cérebro e o coração compartilham funções de modo que... quando um falta, o outro mantem suas atividades... pela virtude de seu companheirismo". Em As Mil e Uma Noites, coletânea de poemas e histórias árabes, Scheherazade conta na 439ª noite, que quando o cientista do Califa pergunta à brilhante escrava Tawaddud "Onde localiza-se o entendimento?", esta lhe responde "Allah o colocou no coração de onde seus raios brilhantes sobem ao cérebro e lá ficam fixos". Mais recentemente, no drama O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, a canção de Portia pergunta "Diga-me onde o desejo é criado, Ou no coração ou na cabeça".