sexta-feira, abril 12, 2013

Doença de Charcot-Marie-Tooth


A doença de Charcot-Marie-Tooth (CMTD), descrita em 1886 por Jean Martin Charcot na França e por Tooth na Inglaterra, faz parte dos grupos das chamadas neuropatias hereditárias, ou seja, de transmissão genética. Há outras neuropatias neste grupo, das quais falaremos posteriormente.

A CMTD possui várias formas, havendo formas de transmissão autossômica dominante (quando há somente a necessidade de um gene para produzir a doença), autossômica recessiva (quando há a necessidade de dois genes mutados para transmitir a doença) ou ligada ao X (doenças com mutação ligada ao cromossomo X, e que afetam mais os homens, que somente possuem um cromossomo X). 

Transmissão autossômica dominante:

http://ghr.nlm.nih.gov/handbook/illustrations/autodominant.jpg

Transmissão autossômica recessiva:

https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQoSdZix4pKHd3BtzMQdNZTHo_N2wWhk1khb4BT2dJqHh9JFxF2PQ


Neste caso acima, carrier é a pessoa que "carrega" a mutação, mas não a desenvolve em doença por que somente há um alelo do gene envolvido. Mas caso ela tenha filhos com uma portadora de mutação igual, podem levar a filhos com a doença.

Abaixo, a transmissão ligada ao X, em forma simplificada:

http://www.hhmi.org/genetictrail/images/xlink2.gif

A forma mais comum de CMTD é a forma 1A.

No entanto, a doença já foi classificada de vários modos nas últimas décadas, e somente com estudos de biologia molecular e genética, consegui-se chegar à classificação atual (bem complicada, por sinal). 

Pode ser que você encontre a doença com o nome de neuropatia hereditária motora e sensitiva tipo 1 (ou em inglês HMSN 1) e tipo 2 (HMSN 2), que se diferenciam por que a primeira lesa mais a bainha de mielina do nervo (leia mais sobre isso aqui) e a segunda leva mais a lesão do próprio nervo. Essa classificação é de antes de 1980. 

Hoje, a classificação mudou, e várias formas têm sido descritas. 

A causa da doença é genética, e relaciona-se à mutação de uma proteína chamada de PMP22, ou Proteína de Mielina Periférica de 22 KDa (KDa é igual a kiloDaltons, e é uma medida de tamanho microscópica). No entanto, mutações desta proteína não causam somente a CMTD, mas levam também a outras doenças, como a HNPP, ou Neuropatia Periférica com Predisposição a Paralisais de Pressão, da qual falaremos em outro post. 

O fato é que, hoje, há cerva de 10 genes conhecidos para CMTD. 

A doença não ocorre "de uma hora para outra" e não é aguda, mas evolui de forma muito devagar ao longo dos anos, em geral começando na infância ou adolescência. Muitas vezes o paciente só se dá conta do problema anos mais tarde do início da doença. 

Uma criança portadora, dependendo da mutação, pode demorar a andar ou andar com dificuldade logo no começo da vida. Pode haver posturas anormais dos pés, com pés tortos ou cavos (que aliás, não é sinônimo da doença, e pode ocorrer em outras neuropatias e doenças dos pés) (observe abaixo). 

https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRfoyzRpD4_JbWYH6rqJ8ZudG8GumxDINMpepgwPfuemdCf2IL5
Quero ressaltar que nenhum destes sintomas e sinais descritos abaixo é único destas doenças, mas pode acontecer em várias outras neuropatias. 

Outras queixas incluem tornozelos finos, marcha desajeitada ou dificuldade de correr (um paciente meu queixava-se de que, quando criança, tinha dificuldade de acompanhar os colegas, e nas corridas geralmente chegava em último). Dor pode ocorrer. Sabe-se que 85% dos paciente apresentam os sinais da doença antes dos 20 anos de idade. 

Queixas de tropeços, pés caídos, frequentes torsões de tornozelo e fraturas não são raras. Acabam desenvolvendo-se, por conta de atrofia da musculatura da planta dos pés, os famosos dedos em martelo (hammertoes em inglês) (veja abaixo).

https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQpHSoGo7MY-XiUIs024dzlmEli8lLxNBJULsBJBrWy3JFJxTt_0w
Outros sintomas são pés frios (por lesão de nervos sensitivos ou autonômicos), perda de pelos nas pernas, inchaço nas pernas (edema), tudo isso por lesões de nervos autonômicos. Dor por lesão de articulações (juntas), lesões e fraturas ósseas, lesões de tendões, pode ocorrer, além de dor causada pela lesão dos próprios nervos, ou dor neuropática. Dor nas costas por marcha anormal ou errada. Cãibras nos pés e pernas, dificuldade de manusear objetos pequenos nos pacientes com sintomas nas mãos (sintomas de longa evolução) e perda de sensibilidade nos pés, principalmente para dor e temperatura, acabam por ocorrer.

Fraqueza nos pés, principalmente ao tentar dobrar o pé para cima (dorsiflexão do pé), e perda de massa muscular (atrofia muscular) ocorrem cedo (dependendo do paciente e do tipo de doença), e mais frequentemente que nos braços e mãos. Perda de sensibilidade pode começar a ocorrer na vida adulta, podendo ser leve, mas há casos e tipos onde há perda sensitiva mais grave. os reflexos tendinosos (aqueles que o médico consegue com o martelinho) estão geralmente diminuídos ou ausentes. Podem haver deformidades dos pés, com pés cavos, dedos em martelo e problemas nos tendões de Aquiles. Estes problemas estéticos e funcionais dos pés não são os mesmos em todos os membros afetados de uma mesma família, e as alterações podem variar (filhos com pés mais cavos ou pais com tornozelos mais afinados). Pode ocorrer perda de sensibilidade de grandes fibras com dificuldade de localização dos pés no espaço e quedas com os olhos fechados ou no escuro. Em 1/4 dos pacientes, os nervos, especialmente os da perna, podem ficar tensos, grossos e visíveis. 

Outros sintomas incomuns podem ocorrer:

1. Fraqueza e perda de volume (atrofia) das mãos
2. Tremor por lesão de nervos pode aparecer em 1/4 dos pacientes
3. Raros pacientes podem apresentar diabetes concomitante, surdez ou alterações cardíacas

O diagnóstico da doença é clínico, através da história lenta e progressiva de déficits periféricos associada a uma história familiar sugestiva da doença (às vezes, solicitamos até que os familiares afetados venham ao consultório para exame; por isso, na consulta para o diagnóstico de uma neuropatia provavelmente genética, é bom levar um parente que tenha os mesmos sintomas ou sinais neurológicos que você). 

Um exame que auxilia no diagnóstico é a eletroneuromiografia, pois através dela podemos estudar melhor os nervos, determinar se o problema é com a bainha de mielina, o nervo em si (axônio) ou os dois, e dizer se os nervos mais afetados são os sensitivos, os motores ou ambos (leia mais sobre esse exame aqui). 

A doença não diminui os anos de vida que uma pessoa pode ter, e pacientes afetados podem viver até a velhice. O grau de incapacidade que uma pessoa pode vir a ter, no entanto, é altamente variável, e difícil de prever em pessoas jovens. A doença progride bem lentamente, e a progressão mais rápida deve levar o médico a suspeitar de outras doenças que não a CMTD. 

O paciente não será tratado somente pelo neurologista, mas terá de ir a outros especialistas, como ortopedistas especialistas em pés e fisiatras que o auxiliem, quer com órteses e aparelhos para facilitar a marcha, quer com cirurgia para corrigir possíveis problemas estéticos e funcionais, como os dedos em martelo.

A vida de um paciente com a doença é a mesma de uma pessoa sem a doença, mostrando que a mesma, em geral, não afeta profundamente a qualidade de vida. Mas certas atividades, como corrida, por exemplo, podem ser difíceis. 

O paciente deve saber que há medicações e drogas que podem (eu disse podem, e cada medicação deve ser discutida com o médico que as prescreve) piorar a função dos nervos, e portanto deve evitá-las sempre que possível. Estas medicações são:

1. Penicilina em altas doses
2. Amiodarona
3. Fenitoína
4. Óxido nitroso
5. Lítio
6. Colchicina
7. Vitamina B6 em altas doses
8. Álcool, não importa a quantidade
9. Hidralazina
10. Cloranfenicol
11. Isoniazida
12. Cisplatina
13. Metronidazol
14. Dapsona
15. Vitamina A
16. Nitrofurantoína

O uso destas medicações deve sempre ser discutido com o médico que prescreve, e os riscos versus benefícios do uso devem ser pesados. 

A dieta deve sempre ser balanceada, e não deve haver déficits nutricionais ou de vitamina.  Os pacientes portadores desta doença devem evitar a todo custo a obesidade, pois acrescenta mais peso sobre os pés e tornozelos, piorando a parte funcional e causando mais dor à marcha.

Fisioterapia é o tipo de tratamento adequado aos pacientes, e deve sempre ser feita conforme os direcionamentos do neurologista, ortopedista e fisiatra. O uso de órteses (veja abaixo) auxiliam o paciente a manter o pé reto, a evitar quedas e a manter suas atividades e sua vida diária. 

Alguns tipos de órteses:

http://www.vmorthotics.co.uk/images/Achilles_Drop_Foot_Orthoses.png


http://www.texas-medical.com/images/orthotics/pfsplint.jpg


Dor pode vir de deformidades das juntas ou uso compensatório ou em excesso de certos grupos musculares. Dor neuropática, causada por lesão dos nervos, é mais incomum, mas pode ocorrer. 

Mais estudos estão atualmente em andamento à procura de novas medicações ou tratamentos para a doença. Novidades no futuro certamente virão.