segunda-feira, abril 29, 2013

Pequeno dicionário de termos médicos - Síndrome de Charles Bonnet

Em meados da década de 1760, Charles Lullin, um senhor de 89 anos com grave perda visual, começou a apesentar visões, imagens espontâneas em um campo visual que não mais enxergava nada. De acordo com seu próprio relato, escrito em cerca de 18 páginas de um caderno de anotações pelo seu neto, ele via pessoas, animais, pássaros, construções, ruas e estradas. Ele não apresentava mais nenhuma alteração neurológica e nenhum sinal de doença psiquiátrica. 

Seu neto, um naturalista e botânico suíço chamado Charles Bonnet não sabia e não conhecia o que estava ouvindo enquanto registrava todas as palavras de seu avô. No entanto, mal ele sabia que ele estava presenciando uma das mais importantes descobertas da neurociência. Que o próprio cérebro pode produzir imagens (e não somente isso, mas sons, odores e sensações as mais diversas).

Charles Lullin estava apresentando alucinações visuais, ou seja, ele estava vendo imagens que não estavam lá, e que ninguém mais via além dele próprio. 

Até há algumas décadas ter alucinações significava estar enlouquecendo. Muitas pessoas, ainda hoje, evitam comentar sobre isso com medo de serem taxas de loucos. Mas não é exatamente o caso aqui. Podemos ter alucinações mesmo sem o mínimo de insanidade mental.

O que a síndrome de Charles Bonnet demonstra é que a ausência de estímulos, de input (de entrada do estímulo na área cerebral destinada a ele) gera a produção, pelo próprio cérebro, de imagens ou outras sensações que podem relacionar-se a experiências que o paciente já teve.

Assim, pessoas que antes enxergavam, mas hoje perderam a visão, total ou parcialmente, podem apresentar visões, alucinações visuais no campo visual ou na parte do campo comprometida pela doença. Pessoas com lesões dos olhos, da retina, dos nervos ópticos ou do córtex visual podem ter alucinações que nada mais são do que malhas neuronais não inibidas por estímulos externos (neste caso, a luz) produzindo sensações relacionadas ao sentido lesado (visão).

Esta mesma síndrome reflete-se em outras condições, como na síndrome do membro fantasma, quando a ausência de um membro (ou por acidente, ou por doença, ou por amputação por cirurgia) leva à produção de sensações anormais que o paciente refere sentir no membro que não existe mais (um paciente sem o braço direito pode referir dor ou coceira na mão direita). Ou em alucinações auditivas, de sons, apitos, seu próprio nome sendo chamado, em pacientes com perda auditiva grave.

Esta condição demonstra o quão dinâmico e plástico nosso cérebro é, adaptando-se de forma impressionante às situações nas quais nos encontramos.

Mas, que imagens o paciente com síndrome de Charles Bonnet vê? Bem, sempre serão imagens que dizem respeito a experiências passadas. Um paciente nunca terá visões de algo que nunca viu ou presenciou. 

Tive um paciente com essa síndrome (que foi transitória e respondeu a medicação) que apresentava no olho esquerdo, do lado da orelha (ele havia perdido a visão parcialmente daquele lado por glaucoma) a visão de pessoas estranhas, bem vestidas, mas contorcidas, dançando no campo visual, ora mais perto, ora mais longe, ou de rostos que se aproximavam dele pelo campo lateral esquerdo, e que logo sumiam quando ele tentava olhar para elas.

Assim, o paciente pode ver formas, pessoas normais ou deformadas, partes de corpos, rostos normais ou com desproporções, paisagens, casas, ruas, e imagens complexas como uma cena completa de pessoas ou animais andando em algum lugar.

As pessoas que o paciente vê, em geral, são mudas, não falam nada, não olham para o paciente, não se reportam a ele, permanecem estáticas ou em seu mundo imaginário, e somem do nada (diferente das alucinações visuais típicas dos transtornos psicóticos, quando o paciente pode, inclusive, discutir com a alucinação).

A síndrome não tem diagnóstico em exames, e é puramente clínica. Ressonância magnética ou EEG são normais ou mostram as causas da síndrome, como tumores, placas de esclerose múltipla ou derrames nos campos de projeção dos nervos e radiações ópticos. Para o diagnóstico, no entanto, o médico deve conhecer a doença e saber que ela existe, e saber diferenciar de outras causas de alucinações visuais,  como enxaquecas (que cursam com auras visuais), crises epilépticas e suas auras, ou crises focais occipitais, e especialmente as causas psiquiátricas.

E há tratamento, geralmente com medicações que diminuem a taxa de disparo neuronal e estabilizam a conexão entre os neurônios, como alguns tipos de antidepressivos, por exemplo.