segunda-feira, abril 29, 2013

Pequeno dicionário de termos médicos - Síndrome de Charles Bonnet

Em meados da década de 1760, Charles Lullin, um senhor de 89 anos com grave perda visual, começou a apesentar visões, imagens espontâneas em um campo visual que não mais enxergava nada. De acordo com seu próprio relato, escrito em cerca de 18 páginas de um caderno de anotações pelo seu neto, ele via pessoas, animais, pássaros, construções, ruas e estradas. Ele não apresentava mais nenhuma alteração neurológica e nenhum sinal de doença psiquiátrica. 

Seu neto, um naturalista e botânico suíço chamado Charles Bonnet não sabia e não conhecia o que estava ouvindo enquanto registrava todas as palavras de seu avô. No entanto, mal ele sabia que ele estava presenciando uma das mais importantes descobertas da neurociência. Que o próprio cérebro pode produzir imagens (e não somente isso, mas sons, odores e sensações as mais diversas).

Charles Lullin estava apresentando alucinações visuais, ou seja, ele estava vendo imagens que não estavam lá, e que ninguém mais via além dele próprio. 

Até há algumas décadas ter alucinações significava estar enlouquecendo. Muitas pessoas, ainda hoje, evitam comentar sobre isso com medo de serem taxas de loucos. Mas não é exatamente o caso aqui. Podemos ter alucinações mesmo sem o mínimo de insanidade mental.

O que a síndrome de Charles Bonnet demonstra é que a ausência de estímulos, de input (de entrada do estímulo na área cerebral destinada a ele) gera a produção, pelo próprio cérebro, de imagens ou outras sensações que podem relacionar-se a experiências que o paciente já teve.

Assim, pessoas que antes enxergavam, mas hoje perderam a visão, total ou parcialmente, podem apresentar visões, alucinações visuais no campo visual ou na parte do campo comprometida pela doença. Pessoas com lesões dos olhos, da retina, dos nervos ópticos ou do córtex visual podem ter alucinações que nada mais são do que malhas neuronais não inibidas por estímulos externos (neste caso, a luz) produzindo sensações relacionadas ao sentido lesado (visão).

Esta mesma síndrome reflete-se em outras condições, como na síndrome do membro fantasma, quando a ausência de um membro (ou por acidente, ou por doença, ou por amputação por cirurgia) leva à produção de sensações anormais que o paciente refere sentir no membro que não existe mais (um paciente sem o braço direito pode referir dor ou coceira na mão direita). Ou em alucinações auditivas, de sons, apitos, seu próprio nome sendo chamado, em pacientes com perda auditiva grave.

Esta condição demonstra o quão dinâmico e plástico nosso cérebro é, adaptando-se de forma impressionante às situações nas quais nos encontramos.

Mas, que imagens o paciente com síndrome de Charles Bonnet vê? Bem, sempre serão imagens que dizem respeito a experiências passadas. Um paciente nunca terá visões de algo que nunca viu ou presenciou. 

Tive um paciente com essa síndrome (que foi transitória e respondeu a medicação) que apresentava no olho esquerdo, do lado da orelha (ele havia perdido a visão parcialmente daquele lado por glaucoma) a visão de pessoas estranhas, bem vestidas, mas contorcidas, dançando no campo visual, ora mais perto, ora mais longe, ou de rostos que se aproximavam dele pelo campo lateral esquerdo, e que logo sumiam quando ele tentava olhar para elas.

Assim, o paciente pode ver formas, pessoas normais ou deformadas, partes de corpos, rostos normais ou com desproporções, paisagens, casas, ruas, e imagens complexas como uma cena completa de pessoas ou animais andando em algum lugar.

As pessoas que o paciente vê, em geral, são mudas, não falam nada, não olham para o paciente, não se reportam a ele, permanecem estáticas ou em seu mundo imaginário, e somem do nada (diferente das alucinações visuais típicas dos transtornos psicóticos, quando o paciente pode, inclusive, discutir com a alucinação).

A síndrome não tem diagnóstico em exames, e é puramente clínica. Ressonância magnética ou EEG são normais ou mostram as causas da síndrome, como tumores, placas de esclerose múltipla ou derrames nos campos de projeção dos nervos e radiações ópticos. Para o diagnóstico, no entanto, o médico deve conhecer a doença e saber que ela existe, e saber diferenciar de outras causas de alucinações visuais,  como enxaquecas (que cursam com auras visuais), crises epilépticas e suas auras, ou crises focais occipitais, e especialmente as causas psiquiátricas.

E há tratamento, geralmente com medicações que diminuem a taxa de disparo neuronal e estabilizam a conexão entre os neurônios, como alguns tipos de antidepressivos, por exemplo. 

sábado, abril 27, 2013

Polirradiculoneuropatia inflamatória crônica ou CIDP


Descrita pela primeira vez em 1890 por Eichhorst (denominada de neurite recorrente [neurite significa literalmente inflamação (ite) dos nervos (neuros)]), a CIDP chamada a atenção por ter caráter crônico, evoluindo com surtos e melhoras ao longo dos anos. Seu nome atual foi dado por James P. Dyck e colaboradores em 1984. 

Clinicamente, a doença parece com a síndrome de Guillain-Barré (SGB), mas diferente da SGB, que evolui na imensa maioria dos casos (85% ou mais) com um surto único, aqui há vários surtos, como na esclerose múltipla. 

A evolução básica é a de uma fraqueza simétrica (igual nos 4 membros) podendo haver sintomas de formigamentos (parestesias) ou mesmo perda de sensibilidade para temperatura (atermestesia), dor (analgesia), tato (hipoestesia) ou vibração (apalestesia) e senso de equilíbrio (anartrestesia) com mais frequência que na SGB. O curso pode ser progressivo ou não. Em geral, os sintomas evoluem por mais de 8 semanas. Sintomas de fadiga, dormência, e sensação de picadas nos dedos dos pés e mãos podem ocorrer. Dor pode ocorrer nos membros. 

Como na SGB, há perda dos reflexos tendinosos profundos (arreflexia - aqueles reflexos testados com o martelinho). Pode haver paralisia facial, diminuição de sensibilidade na face, alterações da deglutição (ato de engolir) ou da fala. Pode haver ainda incontinência ou retenção urinária e fecal. 

A doença pode afetar qualquer faixa etária, sendo mais comum nos indivíduos adultos de ambos os sexos. 

Como na SGB, há aumento de proteínas no líquor com células em número normal (a famosa dissociação proteíno-citológica). 

A doença pode ter variantes, ou seja, exemplos de CIDP mas com sintomas diferentes. Apesar de fraqueza progressiva, ascendente (das pernas aos braços) e simétrica com sintomas sensitivos ser a regra dos casos típicos, podemos ter casos de pacientes com perda sensitiva pura sem fraqueza; pacientes com quadro motor puro sem alterações sensitivas (muitos destes pacientes possuem uma forma de CIDP chamada de neuropatia motora multifocal com bloqueio de condução, que responde melhor à imunoglobulina humana IV); há casos de pacientes com uma síndrome chamada de neuropatia motora e sensitiva multifocal ou MADSAM ou chamada de síndrome de Lewis-Sumner (já vi um caso desses, uma única vez), onde há acometimento não de todos os nervos, mas de nervos isolados (neuropatia multifocal), tanto motores como sensitivos, e que pode estar associado à produção anormal de imunoglobulinas, a mais importante delas sendo a IgM (o que chamamos de gamopatia monoclonal de significância indeterminada).

A causa da doença não é única, mas sabe-se ser imunológica (o próprio corpo ataca as suas próprias células nervosas), havendo predisposição genética para desenvolver a doença. Infecções pelo citomegalovírus, diarreia, vacinações (é rara a doença por vacinações; portanto, não deixe de se vacinar por isso), e picadas de inseto podem predispor à doença.

A doença pode ocorrer em qualquer faixa etária, e em ambos os sexos. É rara, e ocorre em cerca de 1 a 2 pessoas a cada 100,000 pessoas. 

O diagnóstico começa com uma boa história e um exame físico e neurológico, complementado sempre por uma eletroneuromiografia bem feita e um exame de líquor. Em alguns casos, as raízes lombares que saem para as pernas podem ficar espessadas e alargadas, e uma ressonância magnética de coluna lombar pode mostrar isso.

O tratamento é complexo, e deve ser individualizado. Não visa a cura, mas o controle dos surtos. Pode-se usar corticoides tanto via oral como pela veia na maior parte dos casos, mas não em todos, já que certos casos não respondem a estas medicações (somente o médico pode verificar isso). O uso de imunoglobulina humana IV (descrita em post próprio neste blog) pode ser usado em uma variedade de casos da doença, e em variantes. Pode-se associar as duas medicações. Já o uso de plasmaférse leva também a melhora, apesar de produzir mais efeitos colaterais. 

Outras medicações podem ser usadas a critério médico, como azatioprina, metotrexate, ciclofosfamida, e outras medicações. Estas drogas são quimioterápicos, que são também usadas no controle de outras doenças e no tratamento de certos tipos de cânceres, e sua indicação deve ser feita pelo médico especializado. 

terça-feira, abril 16, 2013

Neuropatia Periférica com Predisposição a Paralisias de Pressão ou HNPP


A doença denominada de Neuropatia Periférica Hereditária com Predisposição a Paralisias de Pressão ou HNPP é uma doença geneticamente determinada, tal como a doença de Charcot-Marie-Tooth descrita no post anterior. No entanto, a HNPP é menos frequente e talvez menos conhecida, mas não tão rara. Sua mutação genética encontra-se no mesmo local da mutação da doença de Charcot-Marie-Tooth, mas o tipo da mutação é diferente (a isso chamamos de heterogeneidade fenotípica, ou seja, uma mesma mutação causando vários tipos de problemas diferentes).

A doença foi descrita por DeJong em 1947 em um mineiro de carvão da Holanda que trabalhava agachado, e em 4 de seus parentes de 3 gerações diferentes. Logo, outros pesquisadores publicaram caso parecidos, sempre com história familiar semelhante. Logo em 1965, quando a eletroneuromiografia já existia, as anormalidades de condução nervosa começaram a ser descritas. Os estudos de biopsia logo vieram, mostrando os nervos, após sucessivas perdas de mielina (desmielinização) e novos recapamentos com mielina (remielinização) parecendo bulbos de cebola ou salsichas. 

Na figura abaixo você vê nervos cortados de frente. As fibras mais evidentes demonstram bainhas de mielina redundantes e grossas, tendo este aspecto o nome de tomácula, ou bulbo de cebola, que pode ser encontrado nas biopsias de nervo de pacientes com HNPP.

http://neuromuscular.wustl.edu/pics/biopsy/nerve/hnpp/hnpplptb.jpg

Os estudos genéticos apareceram na década de 80 do século XX, com a categorização dos vários subtipos de doença de Charcot-Marie-Tooth, e posteriormente a categorização genética da HNPP. Descobriu-se que a mutação envolve uma proteína chamada de Proteína da Mielina Periférica, ou PMP22 (22 kiloDáltons é o peso da molécula da proteína). A perda (ou deleção) de uma parte do gene que codifica esta proteína leva à maior parte dos casos de HNPP, mas há outros tipos de mutações do mesmo gene. 

A doença geralmente começa aos 20 ou 30 anos de idade, mas pode começar desde a infância até casos onde idosos de 70 anos desenvolveram a doença. A paralisia pode estar presente raramente ao nascimento. A doença, tal como a doença de Charcot-Marie-Tooth, é lentamente progressiva e não começa de forma súbita. Pode ser assintomática em alguns pacientes, ou se, não demonstrar sintomas. Ou pode se tornar aparente (não ser causada, mas ficar mais visível) quando o paciente desenvolve uma neuropatia periférica por outra causa, como diabetes, uso de álcool ou drogas, ou doenças autoimunes.

Em geral, o paciente tem maia sintomas motores que sensitivos. Os pacientes costumam queixar-se de que, ao deixar o membro em repouso, como o braço com o cotovelo em cima da mesa, ou mantendo as pernas cruzadas, acabam por desenvolver paralisias dos nervos lesados e dormências no local de inervação do nervo lesado, que ao invés de durar segundos a minutos como normalmente, duram de semanas a meses. Os ataques de fraqueza e dormência, sempre de nervos específicos, podem ocorrer subitamente, de forma indolor, e com recuperação dos déficits no início da doença.

À medida que os traumas aos nervos vão ocorrendo, déficits neurológicos como perda de força leve ou alterações de sensibilidade podem acabar permanecendo. Muitos destes traumas são mínimos ou inevitáveis, como carrear peso, por exemplo, ou mesmo escrever. Tipicamente, os pacientes não relatam dor. Alguns pacientes podem acabar desenvolvendo uma polineuropatia, ou seja, um acometimento de vários nervos, geralmente à medida que a doença avança e os traumas se sucedem.

Em um estudo de 1996, 40% dos pacientes não sabiam que tinham a doença mesmo apresentando sintomas, e 25% eram assintomáticos. Em outro estudo com 70 paciente de 1999, o número de ataques que os pacientes apresentavam em toda a vida, em média, era de 2. Os nervos mais afetados, do mais para o menos afetado, são o nervo fibular, o ulnar, o plexo braquial, o nervo radial e o mediano (veja abaixo):

http://files.fisiogrup.webnode.com.br/200000068-cf17ad10b5/nervo_ulnar_all.jpg
Na figura acima, vemos o nervo ulnar, o nervo mediano e o plexo braquial, identificado como Nerve Roots (Raízes Nervosas).

http://www.sistemanervoso.com/images/anatomia/np_i_102.jpg
Esta bela figura aí em cima mostra o nervo fibular, na parte de fora da perna (você pode palpá-lo, com cuidado, tocando o ossinho que fica do lado de fora do joelho e logo abaixo dele; o nervo está atrás deste osso).

http://www.clinicadevita.com.br/imagens/supinador_01.jpg
E este aí em cima é o nervo radial, cuja paralisia dá a famosa mão caída. 

O mesmo estudo citado acima demonstra que as paralisas duraram, em média, mais de 3 meses em 15% dos pacientes. Alguns poucos pacientes podem ter uma forma semelhante à doença de Charcot-Marie-Tooth (leia o post anterior para conhecer esta doença).

Alguns pacientes sem sintomas pode apresentar anormalidades ao exame neurológico ou na eletroneuromiografia. A doença é rara na infância. Dois autores relataram em 2003 um caso de uma criança de 2 anos com a doença. 

A doença pode, no entanto, ser complicada por outras doenças que cursam com neuropatia periférica, como diabetes, problemas de rim (uremia), uso de álcool e outras drogas, deficiências de vitamina, e uso de medicações que causam neuropatia periférica. Nestes pacientes, a doença pode apresentar-se de forma mais grave, pode complicar as outras causas de neuropatias periféricas, e pode evoluir de forma mais agressiva.

O diagnóstico deve sempre se basear em suspeita diagnóstica pelo médico, já que esta é uma doença incomum entre as causas de neuropatias periféricas. No entanto, a presença de familiares afetados chama a atenção. Mas o médico deve, também, afastar causas tratáveis de neuropatias periféricas, já que a HNPP é genética.

O uso da eletroneuromiografia deve sempre ser considerado no diagnóstico de neuropatia periférica. Já testes genéticos e biopsia muscular devem ter suas indicações discutidas com os médicos que assistem o paciente.

Não há tratamento específico para a HNPP, por ser uma doença genética (ainda não, mas terapias gênicas estão em estudo). No entanto, os pacientes devem procurar evitar situações onde há chance de haver paralisias de nervos, como cruzar as pernas, por exemplo. Os pacientes devem evitar ou tratar as doenças que cursam com neuropatias periféricas, como o diabetes, a deficiência e vitaminas, o uso de álcool e o uso de medicações que pioram neuropatias periféricas (discutidas no post anterior). O uso de medicações e vitaminas deve ser feito somente com prescrição médica. 

sexta-feira, abril 12, 2013

Doença de Charcot-Marie-Tooth


A doença de Charcot-Marie-Tooth (CMTD), descrita em 1886 por Jean Martin Charcot na França e por Tooth na Inglaterra, faz parte dos grupos das chamadas neuropatias hereditárias, ou seja, de transmissão genética. Há outras neuropatias neste grupo, das quais falaremos posteriormente.

A CMTD possui várias formas, havendo formas de transmissão autossômica dominante (quando há somente a necessidade de um gene para produzir a doença), autossômica recessiva (quando há a necessidade de dois genes mutados para transmitir a doença) ou ligada ao X (doenças com mutação ligada ao cromossomo X, e que afetam mais os homens, que somente possuem um cromossomo X). 

Transmissão autossômica dominante:

http://ghr.nlm.nih.gov/handbook/illustrations/autodominant.jpg

Transmissão autossômica recessiva:

https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQoSdZix4pKHd3BtzMQdNZTHo_N2wWhk1khb4BT2dJqHh9JFxF2PQ


Neste caso acima, carrier é a pessoa que "carrega" a mutação, mas não a desenvolve em doença por que somente há um alelo do gene envolvido. Mas caso ela tenha filhos com uma portadora de mutação igual, podem levar a filhos com a doença.

Abaixo, a transmissão ligada ao X, em forma simplificada:

http://www.hhmi.org/genetictrail/images/xlink2.gif

A forma mais comum de CMTD é a forma 1A.

No entanto, a doença já foi classificada de vários modos nas últimas décadas, e somente com estudos de biologia molecular e genética, consegui-se chegar à classificação atual (bem complicada, por sinal). 

Pode ser que você encontre a doença com o nome de neuropatia hereditária motora e sensitiva tipo 1 (ou em inglês HMSN 1) e tipo 2 (HMSN 2), que se diferenciam por que a primeira lesa mais a bainha de mielina do nervo (leia mais sobre isso aqui) e a segunda leva mais a lesão do próprio nervo. Essa classificação é de antes de 1980. 

Hoje, a classificação mudou, e várias formas têm sido descritas. 

A causa da doença é genética, e relaciona-se à mutação de uma proteína chamada de PMP22, ou Proteína de Mielina Periférica de 22 KDa (KDa é igual a kiloDaltons, e é uma medida de tamanho microscópica). No entanto, mutações desta proteína não causam somente a CMTD, mas levam também a outras doenças, como a HNPP, ou Neuropatia Periférica com Predisposição a Paralisais de Pressão, da qual falaremos em outro post. 

O fato é que, hoje, há cerva de 10 genes conhecidos para CMTD. 

A doença não ocorre "de uma hora para outra" e não é aguda, mas evolui de forma muito devagar ao longo dos anos, em geral começando na infância ou adolescência. Muitas vezes o paciente só se dá conta do problema anos mais tarde do início da doença. 

Uma criança portadora, dependendo da mutação, pode demorar a andar ou andar com dificuldade logo no começo da vida. Pode haver posturas anormais dos pés, com pés tortos ou cavos (que aliás, não é sinônimo da doença, e pode ocorrer em outras neuropatias e doenças dos pés) (observe abaixo). 

https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRfoyzRpD4_JbWYH6rqJ8ZudG8GumxDINMpepgwPfuemdCf2IL5
Quero ressaltar que nenhum destes sintomas e sinais descritos abaixo é único destas doenças, mas pode acontecer em várias outras neuropatias. 

Outras queixas incluem tornozelos finos, marcha desajeitada ou dificuldade de correr (um paciente meu queixava-se de que, quando criança, tinha dificuldade de acompanhar os colegas, e nas corridas geralmente chegava em último). Dor pode ocorrer. Sabe-se que 85% dos paciente apresentam os sinais da doença antes dos 20 anos de idade. 

Queixas de tropeços, pés caídos, frequentes torsões de tornozelo e fraturas não são raras. Acabam desenvolvendo-se, por conta de atrofia da musculatura da planta dos pés, os famosos dedos em martelo (hammertoes em inglês) (veja abaixo).

https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQpHSoGo7MY-XiUIs024dzlmEli8lLxNBJULsBJBrWy3JFJxTt_0w
Outros sintomas são pés frios (por lesão de nervos sensitivos ou autonômicos), perda de pelos nas pernas, inchaço nas pernas (edema), tudo isso por lesões de nervos autonômicos. Dor por lesão de articulações (juntas), lesões e fraturas ósseas, lesões de tendões, pode ocorrer, além de dor causada pela lesão dos próprios nervos, ou dor neuropática. Dor nas costas por marcha anormal ou errada. Cãibras nos pés e pernas, dificuldade de manusear objetos pequenos nos pacientes com sintomas nas mãos (sintomas de longa evolução) e perda de sensibilidade nos pés, principalmente para dor e temperatura, acabam por ocorrer.

Fraqueza nos pés, principalmente ao tentar dobrar o pé para cima (dorsiflexão do pé), e perda de massa muscular (atrofia muscular) ocorrem cedo (dependendo do paciente e do tipo de doença), e mais frequentemente que nos braços e mãos. Perda de sensibilidade pode começar a ocorrer na vida adulta, podendo ser leve, mas há casos e tipos onde há perda sensitiva mais grave. os reflexos tendinosos (aqueles que o médico consegue com o martelinho) estão geralmente diminuídos ou ausentes. Podem haver deformidades dos pés, com pés cavos, dedos em martelo e problemas nos tendões de Aquiles. Estes problemas estéticos e funcionais dos pés não são os mesmos em todos os membros afetados de uma mesma família, e as alterações podem variar (filhos com pés mais cavos ou pais com tornozelos mais afinados). Pode ocorrer perda de sensibilidade de grandes fibras com dificuldade de localização dos pés no espaço e quedas com os olhos fechados ou no escuro. Em 1/4 dos pacientes, os nervos, especialmente os da perna, podem ficar tensos, grossos e visíveis. 

Outros sintomas incomuns podem ocorrer:

1. Fraqueza e perda de volume (atrofia) das mãos
2. Tremor por lesão de nervos pode aparecer em 1/4 dos pacientes
3. Raros pacientes podem apresentar diabetes concomitante, surdez ou alterações cardíacas

O diagnóstico da doença é clínico, através da história lenta e progressiva de déficits periféricos associada a uma história familiar sugestiva da doença (às vezes, solicitamos até que os familiares afetados venham ao consultório para exame; por isso, na consulta para o diagnóstico de uma neuropatia provavelmente genética, é bom levar um parente que tenha os mesmos sintomas ou sinais neurológicos que você). 

Um exame que auxilia no diagnóstico é a eletroneuromiografia, pois através dela podemos estudar melhor os nervos, determinar se o problema é com a bainha de mielina, o nervo em si (axônio) ou os dois, e dizer se os nervos mais afetados são os sensitivos, os motores ou ambos (leia mais sobre esse exame aqui). 

A doença não diminui os anos de vida que uma pessoa pode ter, e pacientes afetados podem viver até a velhice. O grau de incapacidade que uma pessoa pode vir a ter, no entanto, é altamente variável, e difícil de prever em pessoas jovens. A doença progride bem lentamente, e a progressão mais rápida deve levar o médico a suspeitar de outras doenças que não a CMTD. 

O paciente não será tratado somente pelo neurologista, mas terá de ir a outros especialistas, como ortopedistas especialistas em pés e fisiatras que o auxiliem, quer com órteses e aparelhos para facilitar a marcha, quer com cirurgia para corrigir possíveis problemas estéticos e funcionais, como os dedos em martelo.

A vida de um paciente com a doença é a mesma de uma pessoa sem a doença, mostrando que a mesma, em geral, não afeta profundamente a qualidade de vida. Mas certas atividades, como corrida, por exemplo, podem ser difíceis. 

O paciente deve saber que há medicações e drogas que podem (eu disse podem, e cada medicação deve ser discutida com o médico que as prescreve) piorar a função dos nervos, e portanto deve evitá-las sempre que possível. Estas medicações são:

1. Penicilina em altas doses
2. Amiodarona
3. Fenitoína
4. Óxido nitroso
5. Lítio
6. Colchicina
7. Vitamina B6 em altas doses
8. Álcool, não importa a quantidade
9. Hidralazina
10. Cloranfenicol
11. Isoniazida
12. Cisplatina
13. Metronidazol
14. Dapsona
15. Vitamina A
16. Nitrofurantoína

O uso destas medicações deve sempre ser discutido com o médico que prescreve, e os riscos versus benefícios do uso devem ser pesados. 

A dieta deve sempre ser balanceada, e não deve haver déficits nutricionais ou de vitamina.  Os pacientes portadores desta doença devem evitar a todo custo a obesidade, pois acrescenta mais peso sobre os pés e tornozelos, piorando a parte funcional e causando mais dor à marcha.

Fisioterapia é o tipo de tratamento adequado aos pacientes, e deve sempre ser feita conforme os direcionamentos do neurologista, ortopedista e fisiatra. O uso de órteses (veja abaixo) auxiliam o paciente a manter o pé reto, a evitar quedas e a manter suas atividades e sua vida diária. 

Alguns tipos de órteses:

http://www.vmorthotics.co.uk/images/Achilles_Drop_Foot_Orthoses.png


http://www.texas-medical.com/images/orthotics/pfsplint.jpg


Dor pode vir de deformidades das juntas ou uso compensatório ou em excesso de certos grupos musculares. Dor neuropática, causada por lesão dos nervos, é mais incomum, mas pode ocorrer. 

Mais estudos estão atualmente em andamento à procura de novas medicações ou tratamentos para a doença. Novidades no futuro certamente virão.

domingo, abril 07, 2013

Tratamento da neuropatia diabética


O tratamento da neuropatia diabética visa melhorar a qualidade de vida do paciente através do controle da dor e das manifestações sensitivas anormais, além de impedir a evolução da doença.

Vários estudos demonstraram que o controle glicêmico (ou seja, o controle do açúcar no sangue) feito de forma regular e correta alentece a progressão da neuropatia nos casos de diabetes tipo 1, e provavelmente no diabetes relacionado a causas metabólicas e genéticas, o tipo 2 (isso não é uma boa notícia?).

No entanto, nos pacientes já com formas dolorosas ou graves de neuropatia, algo tem de ser feito para aliviar a dor e as manifestações sensitivas anormais. Várias medicações têm sido estudadas, algumas sem efeito algum, como o mioinositol, ácidos graxos essenciais, viraminas, vasodilatadores, estatisnas, L-carnitina, gangliosídeos, fatores neurotrópicos e outras medicações.

No entanto, o ácido alfa-lipóico ou ácido tióctico, que é um antioxidante tem se mostrado promissor nos estudos de neuropatia diabética. No entanto, esta é uma medicação, e como tal deve ser usada somente após avaliação e prescrição médicas, pois pode causar efeitos colaterais, sendo um deles a hipoglicemia (queda do açúcar no sangue), que para um diabético (e também para qualquer pessoa) não é bom. 

A neuropatia deve ser tratada precocemente para se ter algum benefício, e é por isso que o controle da glicemia desde o início é importante, ou seja, o bom controle do diabetes, para evitarmos esta complicação que vai afetar virtualmente todos os diabéticos. Para piorar a situação, não é somente o diabetes franco que causa neuropatia, mas mesmo a intolerância à glicose, aquela fase que precede o diabetes (onde a glicemia ainda está um pouquinho acima do normal, sabe? O famoso pré-diabetes) pode levar a neuropatia. Por isso, não espere o diabetes aparecer para se cuidar.

Lembro que atividades físicas melhoram o controle do diabetes (mas só faça atividades físicas após avaliação cardiológica, pelo menos), e evita outras complicações da doença, como problema de retina (cegueira do diabetes), e rins (nefropatia diabética). Fora isso, fumar pode piorar a neuropatia diabética. 

O controle da dor, algo que mais atrapalha os pacientes com neuropatia diabética, pode ser feito com medicações que possuem outras funções. 

Assim, temos antidepressivos que, através de mecanismos tanto nos nervos como no cérebro, podem auxiliar na melhora da dor, como a amitriptilina, a nortriptilina, a venlafaxina e a duloxetina, esta uma medicação nova no mercado para tratar neuropatia diabética dolorosa. Seu uso deve ser diário para ter efeito. 

Medicações que atuam em receptores localizados na medula, os opióides, como a morfina, o tramadol, a codeína e a oxicodona podem também ser usados sob demanda, ou seja, nas situações de piora da dor. 

Anticonvulsivantes podem ajudar através da modulação da dor (diminuição de sua intensidade e frequência), e são as medicações mais usadas para esse fim. Temos a pregabalina, a gabapentina, a carbamazepina, o topiramato, e a lamotrigina. 

Medicações locais (tópicas), para passar na pele, podem se usadas em casos especiais com indicação médica, como o creme de capsaicina (creme de pimenta) em concentrações ínfimas (0,025% e 0,075%). Como a medicação é feita à base de pimenta, deve ser usada com cautela, sob indicação médica, no máximo por 8 semanas seguidas com um intervalo após. Não se deve nem deixar o creme tocar nos olhos ou boca sob risco de lesões graves.

Todas estas medicações somente podem e devem ser usadas com prescrição médica e orientações quanto ao seu uso. Nunca use medicações de amigos, vizinhos ou parentes sem consultar seu médico, pois podem levar a efeitos colaterais (e gostaria de lembrar a máxima que fala que "cada caso é um caso").

Há outras medicações que poderão ser discutidas posteriormente.

sexta-feira, abril 05, 2013

Neuropatia diabética - considerações diagnósticas


Descrita desde, pelo menos, o século 19, a neuropatia diabética é a forma mais comum de doença dos nervos periféricos no mundo ocidental, Brasil incluído, por conta do estilo de vida desregrado, da obesidade e do sedentarismo. 

A neuropatia diabética não é uma entidade única, mas um conjunto de síndromes diversas, que mantêm em comum o fato de afetarem o sistema nervoso periférico e serem complicações precoces ou tardias do diabetes, quer tipo 1 ou 2.

Lembro que o sistema nervoso periférico é composto das raízes dos nervos que saem da medula, dos nervos que formam os plexos e que correm para a periferia do corpo (podendo ser sensitivos, motores, sensitivo-motores e autonômicos), e músculos.

A neuropatia diabética assume, assim, várias formas, sendo a mais comum a polineuropatia diabética, que afeta os nervos das pernas primeiro e de forma simétrica, subindo ao longo dos meses ou anos dos dedos dos pés até o joelho, e ao chegar nos joelhos, em regra, começando a afetar os braços, sempre começando pelas mãos. É uma neuropatia cujas manifestações mais importantes são a dor nos pés e pernas, formigamento, dormência e sensações de picadas nos membros (em especial nos pés) e perda progressiva de sensibilidade na sola dos pés e nos pés, começando pela perda de sensibilidade para toques suaves e finos, e progredindo ao longo dos anos para perda de sensibilidade para sensações mais grosseiras, até a total perda de sensibilidade tátil, térmica e dolorosa nos dedos e nos pés. Isso ocorre principalmente e mais rapidamente nos pacientes com diabetes descontrolado, que não fazem dieta e não usam medicações de forma regular, e que não praticam atividades físicas. A consequência mais catastrófica disso são as lesões que passam despercebidas por não serem sentidas, e que cronificando levam a necrose e eventuais amputações. Veja abaixo o que chamamos de pé diabético (vou mostrar um desenho, por que as figuras reais são pesadas demais):

http://img.webmd.com/dtmcms/live/webmd/consumer_assets/site_images/media/medical/hw/h9991432_001.jpg
Por este motivo que os pacientes diabéticos devem sempre:

1. Manter seus pés limpos e secos, evitando frieiras e pés-de-atleta, micoses entre os dedos que podem levar a infecção por bactérias e mais problemas;

2. Observar sempre seus pés, todos os dias, atrás de lesões que podem ter ocorrido e ter passado despercebidas;

3. Usar sempre sapatos leves e arejados, e evitar andar descalço;

4. Ao chegar em casa, tirar os sapatos e examinar bem os pés;

5. Usara as medicações prescritas de forma correta e sempre ir ao médico endocrinologista, o especialista em diabetes, para bom controle de seus níveis de glicose no sangue. 

Lembro que os pacientes com diabetes, por problemas outros relacionados ao sistema imunológico e de reparo celular, têm dificuldades de cicatrização, o que pode favorecer a formação de úlceras e pés diabéticos. 

Fraqueza muscular pode ocorrer em casos mais graves com dificuldade para ficar na ponta dos pés e mesmo atrofia (perda de massa muscular) nos pés e pernas. 

Os reflexos testados com o martelinho acabam por ficar diminuídos à medida que a neuropatia diabética vai piorando, começando pelos reflexos dos pés, e podendo ir até o reflexo do joelho. 

Outras formas de neuropatia diabética são mais raras, mas podem ocorrer. Temos assim:

1. Neuropatia autonômica - A polineuropatia diabética pode ter sintomas autonômicos acompanhando os sintomas motores e sensitivos, mas podemos raramente ter uma neuropatia principalmente ou exclusivamente autonômica. Esta neuropatia autonômica refere-se a problemas com os nervos que carregam as sensações e funções motoras ditas autonômicas, levando a problemas com a sudorese, problemas com os vasos da pele (a pele pode ficar mais pálida, mais quebradiça, os pelos acabam ficando mais frágeis e mais raros, e as unhas podem ficar mais quebradiças e diferentes). Mas outros sintomas podem aparecer, como dificuldade de esvaziamento do estômago e, logo, dificuldades com a alimentação (gastroparesia diabética), diarreia ou constipação pela desnervação do intestino, queda de pressão ao ficar em pé (hipotensão postural ortostática), problemas com a bexiga (ou dificuldade com a micção ou incontinência urinária, quando a urina sai na roupa), disfunção erétil nos homens (aliás, o diabetes parece ser a causa mais comum de impotência sexual nos homens)

2. Neuropatia craniana - Quando há acometimento dos nervos cranianos, que saem do tronco cerebral (leia mais sobre isso aqui), sendo mais comum em pacientes acima de 50 anos de idade, e acometendo mais o nervo oculomotor (leia mais sobre este nervo aqui), sendo o principal sintoma deste nervo a diplopia ou visão dupla. Outros nervos como o abducente (ou secto nervo, que joga o olho para fora) e o facial podem ser acometidos. 

3. Há uma forma rara de neuropatia que a amiotrofia (perda de massa muscular) diabética ou radiculoplexopatia diabética ou neuropatia diabética proximal, o nome preferido, e que afeta pessoas com diabetes de longa data e que não controlam regularmente seus níveis de glicemia (açúcar no sangue). Essa doença pode ocorrer nos períodos de mau controle glicêmico ou nos períodos de perda de peso involuntária, mas podem ocorrer também em diabéticos controlados e em pacientes que iniciam o diabetes. Geralmente, o quadro começa com dor na região lombar e coxas, podendo não haver dor. Pode aparecer fadiga, cansaço, perda de peso e perda de apetite. Acaba por haver perda de massa muscular (atrofia) e fraqueza das partes mais altas (proximais) da perna (coxa), podendo ser de intensidade leve a grave. O quadro costuma afetar mais uma perna que a outra.

Há outras formas menos comuns de neuropatia diabética, que poderão ser discutidas posteriormente. 

No próximo post, falaremos do tratamento da neuropatia diabética. 








terça-feira, abril 02, 2013

Tratamento da esclerose múltipla

Artigo escrito pelo neurologista Dr. Alexandre Souza Bossoni, e gentilmente cedido para publicação neste blog.

Obs: Esta postagem não visa fazer propaganda de nenhuma medicação, e não possui nenhum conflito de interesse ou patrocínio de quem quer que seja. Visa somente fazer conhecer as medicações em uso para a doença esclerose múltipla aos seus portadores.


Falaremos aqui um pouco da Esclerose Múltipla (EM) e seu tratamento de primeira linha. O tratamento dos surtos já foi publicado em post anterior (leia aqui para saber mais).

A EM é uma doença crônica, inflamatória e imunomediada do sistema nervoso central (cérebro e medula espinhal).

Mas o que tudo isso significa? O fato de ser crônica significa que no momento não existe uma cura para a doença, mas há maneira de amenizar os sintomas e retardar a progressão, entretanto sem curar o paciente definitivamente (da mesma forma que não temos cura para a pressão alta, diabetes, asma, tipos de alergia e colesterol alto, por exemplo).

A doença é inflamatória, pois o que encontramos no cérebro são áreas de inflamação do tecido cerebral, inflamação essa que pode causar dano cerebral ou medular, ou apenas impedir que essas áreas inflamadas do cérebro funcionem corretamente.

E a doença é imunomediada porque o próprio sistema imunológico irá causar a inflamação e o dano no tecido nervoso, ou seja, o sistema de defesa do organismo, por motivos ainda pouco conhecidos, agride partes do próprio corpo. Isso em medicina é relativamente comum, e a doenças causadas por fatores semelhantes chamamos de doenças autoimunes (já discutidas neste blog). Várias doenças têm a mesma explicação (diabetes tipo 1, alguns tipos de hipotireoidismo - quando a tireoide para de funcionar - artrite reumatoide, lúpus, dentre outras).

Outro ponto importante da EM é sua heterogeneidade, sua variabilidade de indivíduo para indivíduo. Disse isso porque a EM pode ser mais grave num individuo e menos grave em outro, podendo até parecer que são doenças completamente diferentes. Quando falo sobre gravidade, refiro-me a quantos surtos da doença o paciente tem a cada ano e o grau de comprometimento da funcionalidade que ela causa (o paciente passar a ter dificuldades de locomoção, coordenação motora, perda visual e até dificuldades intelectuais; tudo isso faz com que alguns pacientes tornem-se mais e mais dependentes dos outros para realizar as atividades da vida cotidiana, ou seja, tornam-se menos funcionais).

Para mais detalhes sobre a esclerose múltipla, procure neste blog o post específico, pois agora vamos falar do que realmente interessa: o tratamento.

Vamos separar o tratamento em duas partes: o não medicamentoso e o medicamentoso. O não medicamentoso compõe-se de fisioterapia, terapia ocupacional, psicoterapia, fonoterapia assistência social e etc. Estas são medidas e tratamentos contínuos, que devem ser mantidos por muito tempo nos pacientes com dificuldades, direcionados para as reais necessidades de cada pessoa, e cujo objetivo é manter o paciente funcional, independente e com a melhor qualidade de vida possível.

Vamos a um exemplo: mulher de 28 anos, com EM diagnosticada quando tinha 18 anos, apresentando em média um a dois surtos ao ano. Passou a apresentar fraqueza do lado direito do corpo.  A paciente está com dificuldades para escrever e para andar. É nesse momento, por exemplo, que o fisioterapeuta e o terapeuta ocupacional vão trabalhar para recuperar as funções acometidas, melhorar a independência dessa paciente e ainda ajudar na escolha de dispositivos que ajudem no dia a dia. Eles também ensinam a paciente a dar o melhor de si e conviver com essas dificuldades. Para uma mulher jovem que trabalha conviver com essas limitações é difícil, portanto suporte psicológico para ela e para a família é necessário. Caso ela não possa mais trabalhar, a assistente social pode auxiliar na busca de empregos adaptados e direcionar a paciente a centros, núcleos de apoio, orientar sobre direitos e tudo o mais.

Mas, e os remédios? Relembrando um pouco as características da EM, temos que a doença é imunomediada, crônica, inflamatória; portanto todo o tratamento é baseado em medicações que atuem sobre o sistema imunológico para impedi-lo de agredir o tecido cerebral. Até o momento todas as medicações fornecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) são injetáveis. Medicações orais estão, em sua maioria, em pesquisa, sendo que já usamos no mundo (e no Brasil, inclusive) uma medicação oral, o fingolimod, mas este ainda não é uma realidade em larga escala no Brasil (veja abaixo).

https://encrypted-tbn2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQlv1o9i2m4WAfCob1ceptWdC9xc59PPpC2WSOUbazUrKocYbzxNA


Falaremos somente das medicações injetáveis. Depois faremos alguns comentários, em outro post, sobre o fingolimod.

Esses remédios são de dois tipos: os intérferons beta (IFNb) e o Polímero Sintético (AG). Os intérferons são três: IFNb-1b (Betaferon® - uso subcutâneo - parecido com aplicação de insulina - em dias alternados), IFNb-1a (Rebif® - aplicação subcutânea três vezes por semana - e  Avonex® - aplicação intramuscular uma vez por semana). Veja abaixo:

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi0JUMjtwFTRW0iSApN0YBZZhqf6Y-UkucgQni0XhETp2jBxvT3KlNCxyWSIcsS3EiTFzwMgbQBBOOXpSwJUS6Rc3TaK0gatPDjViFf58lh_N-o0szcXMWP_-SYHY2jdPs9Q9hAN-iQObA/s1600/fig5.jpg

https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQyZo5u81ES5O7vjkpRf1YcHPJRwzo62cr3uC0DVU0m0WibEGeo9w

https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRFW2HVvU8cSahjHdcRLV-jsrUX2svabqbTzEgEcvXUkXfRxyAi

Todos os intérferons são auto-administraveis, ou seja, o objetivo é que o próprio paciente ou seu cuidador aplique a medicação. Eles vêm em dispositivos que parecem canetas: onde estaria a tinta, está o medicamento e, onde estaria a ponta da caneta, está uma agulha apropriada. O uso é fácil! Basta enfrentar o medo em prol de uma saúde melhor. Observe abaixo a caneta de aplicação do Betaferon.

http://bestanden.mskidsweb.nl/imguser/content/1beKindmetMS-nieuws-betaferon.jpg
Os intérferons são substâncias produzidas pelo nosso próprio corpo. A função deles é de passar informações específicas de uma célula para outra. Imaginemos um exército: O general quer dar uma ordem para que seus soldados ataquem determinado alvo. Para isso ele manda uma carta (manda uma molécula de INF), para mudar os soldados de lugar, manda outro tipo de carta (outro tipo de INF), e para parar o ataque, um terceiro tipo diferente de carta (um terceiro tipo de molécula de INF), ou seja, os INF são a forma desse general comandar seu exército; é a forma do sistema imunológico coordenar a ação de todas as células de defesa espalhadas pelo corpo. Então é com esses INF sintéticos que tentamos simular uma ordem desse general para cessar os ataques ao tecido cerebral.

Os principais efeitos colaterais dos INF são sintomas de gripe (febre, mal estar, dor no corpo), e em geral eles melhoram com o tempo ou são bem controlados com anti-inflamatórios comuns (muito importante - o combate da inflamação do corpo pelos anti-inflamatórios comuns não tem nenhuma relação com o combate da inflamação no cérebro pelos INF. Apenas as palavras são parecidas, os mecanismos biológicos envolvidos são diferentes).

Caso esses sintomas acima persistam e sejam incapacitantes, você deverá falar diretamente com seu médico. Quando em uso dessas medicações é necessário controle laboratorial com hemograma e dosagem de enzimas do fígado, pois pode ocorrer lesão do fígado e alteração da contagem dos glóbulos sanguíneos.

Dos polímeros sintéticos temos apenas um no mercado - o Acetato de Glatirâmer (Copaxone® - uso diário subcutâneo). A função dele é parecida com as dos INF. Dentro do corpo ele tenta desviar a resposta inflamatória do cérebro. Os principais efeitos colaterais são dor e vermelhidão no local da aplicação, dor no peito, vermelhidão facial, e o uso prolongado pode causar atrofia da gordura subcutâneo no local da aplicação. Observe abaixo:

http://vaccineresistancemovement.org/wp-content/uploads/2011/07/Copaxone2.jpg

 Até o momento não existe estudo científico válido que prove a superioridade de uma medicação sobre a outra, portanto a escolha vai depender dos sintomas, do exame físico neurológico, da quantidade de lesões vistas na ressonância magnética, da agressividade da doença, da sensibilidade individual aos efeitos colaterais, da experiência do médico; ou seja, é uma escolha única feita entre o médico e o paciente.

Hoje sabemos que tanto os INF, nas suas diferentes fórmulas, quanto o AG são capazes de reduzir, em média, a taxa de surtos em aproximadamente 30%, ou seja, se aquela nossa paciente de 28 anos tivesse dez surtos em dois anos sem qualquer medicação, com os IFN ou o AG esperaríamos uma redução de três surtos em dois anos, ficando com um total de sete surtos em dois anos.

Pode haver uma resposta melhor, ou seja, uma maior redução na taxa de surto? Sim, é possível; entretanto no momento não existe um teste que prediga se a pessoa obterá um controle melhor ou não.

É possível águem apresentar resposta melhor a um medicamento do que a outro, por exemplo, mau controle com INF e bom controle com AG? É possível, entretanto também não há um modo eficaz para prever isso.

Essas medicações também se mostraram eficazes na diminuição do grau de incapacidade. Por exemplo, se ao final de sete anos de doença um grupo de pacientes vai acabar na cadeira de rodas, com o tratamento adequado esse mesmo grupo estará andando com um apoio (muletas), por exemplo.

Espero ter esclarecido as principais diretrizes sobre o tratamento da EM. Quero ressaltar que a doença tem grande variabilidade individual, existindo pessoas com pouquíssimos surtos durante a vida e quase nenhuma sequela. Lembro também da necessidade do uso correto da medicação e da grande importância do tratamento não medicamentoso. Busque médico da sua confiança, informe-se e tire suas dúvidas com seu médico. Em EM, as decisões são bastante individualizadas; portanto, alguém que conheça sua história terá bons elementos para tomar decisões sobre o tratamento e também de identificar o melhor momento de mudar o plano terapêutico.