sexta-feira, novembro 07, 2014

Correlações entre a anatomia e a história da neurologia 1 - O Polígono de Willis

Lá no seu cérebro, ou melhor, aí, no seu cérebro, embaixo dele, existe um complexo de artérias que mais parece o Rodoanel, chamado de polígono de Willis. Forma-se a partir as conexões entre as duas artérias carótidas internas, divididas em artéria cerebral anterior e artéria cerebral média, e a artéria basilar, que através das artérias cerebrais posteriores conectam-se à parte da frente do cérebro. Lá vai uma figura para você não ficar boiando:

http://www.nlm.nih.gov/medlineplus/ency/images/ency/fullsize/18009.jpg

Muito bem. Mas quem foi Willis??

Thomas Willis nasceu na Inglaterra em 1621, e morreu em 1675. Era médico e descobridor, em uma época nebulosa da história da medicina, onde pouco se sabia e, por isso, pouco se podia fazer pelas doenças. Graduou-se na famosa e antiga Universidade de Oxford. Foi médico da corte de Charles I da Inglaterra, e rivalizava na Europa, tanto na medicina como na política, com outro Thomas,  mas este na Holanda, Thomas Sydenham, que descreveu a coreia de Sydenham da febre reumática. 

Entre os vários livros publicados por Thomas Willis, alguns foram sobre neurologia (pelo menos três lidavam com anatomia do cérebro), de tal modo que Thomas Willis, para alguns, é visto como o fundador da neurologia. Ele tinha um vasto conhecimento anatômico, e utilizava-se dele na sua prática clínica.

Thomas Willis foi um pioneiro na descrição anatômica do sistema nervoso, sendo que sua descoberta mais notável foi o famoso Polígono (ou círculo) de Willis, que pode ser visto na figura acima. Em 1664, ele publicou o livro Cerebri anatome, sobre a anatomia do cérebro e dos nervos. É neste trabalho que ele usa pela primeira vez o nome neurologia (neuros + logos, ou estudo do sistema nervoso). Em 1667, ele publicou o livro Pathologicae cerebri, et nervosi generis specimen, um trabalho em patologia e neurofisiologia (ou o pouco que se sabia à época). Seus trabalhos posteriores também foram pioneiros na proclamação da relação entre mente e cérebro, tendo sido, também, um precursor da psiquiatria. Mas apesar de muito escrever, ele chegou a ter condutas estranhas para o tratamento de alguns pacientes, como bater na cabeça dos pacientes com pedaços de madeira, de modo que o que ele escrevia, ele não colocava em prática. 

Os nervos cranianos foram primeiramente descritos por Willis, na ordem em que conhecemos hoje (do 1º ao 12º, são Olfatório, Óptico, Oculomotor, Troclear, Trigêmeo, Abducente, Facial, Vestibulococlear, Glossofaríngeo, Vago, Acessório e Hipoglosso) (leia mais aqui). 

Ele descreveu o corpo caloso (leia mais aqui) e várias outras estruturas cerebrais, como o fórnix, os corpos mamilares (localizados na base do crânio), o cerebelo, as artérias carótidas e a artéria basilar. 

Fora da neurologia, o diabetes mellitus se chama mellitus por causa de Willis (o diabetes era conhecido, antigamente, como doença de Willis), e foi ele que relacionou a urina de gosto doce ao diabetes (não faça isso em casa, mas diabéticos descompensados podem eliminar quantidades de açúcar na urina, o que a deixa com um gosto adocicado). 

Thomas Willis:

http://media-2.web.britannica.com/eb-media/32/40532-004-7E058048.jpg

Epilepsia mioclônica juvenil

Considerada a epilepsia generalizada mais comum do paciente jovem, a epilepsia mioclônica juvenil (EMJ) teve seu primeiro relato na França, em 1867. No entanto, a melhor descrição, tendo sido feita em 47 casos, foi feita por Janz e Matthes na Alemanha em 1955. Até hoje, a EMJ pode ser chamada de epilepsia de Janz. O nome EMJ foi cunhado em 1984.

A EMJ é uma forma de epilepsia generalizada de forte componente genético, ou seja, há grande tendência a hereditariedade. Tipicamente, a doença se inicia na segunda década de vida (entre os 10 e 20 anos de idade), com crises mioclônicas e crises tônico-clônicas generalizadas e crises de ausência. 

Mas o que são todas estas crises?

Crises mioclônicas são abalos musculares súbitos, como se um choque percorresse o corpo todo, levando a contrações súbitas, repentinas, de todo o corpo, principalmente os braços e ombros. Podem ser únicas ou múltiplas, podendo ocorrer várias em um período curto de tempo. Costumam, na EMJ, ser mais durante a manhã,  e podem fazer com que a criança ou o jovem arremessem, simplesmente, o que houver em suas mãos, como uma xícara de café ou a escova de dente. 

As crises tônico-clônicas generalizadas (CTCG) são as famosas convulsões, onde há abalos de todo o corpo com perda de consciência, sialorreia (a pessoa começa a babar), liberação de urina, podendo haver mordedura de língua durante a crise. Estas CTCG podem vir após um surto de crises mioclônicas, e como estas, ocorrem mais ao despertar, mesmo se for de uma soneca durante o dia. As crises mioclônicas e as CTCG podem ser desencadeadas por acordar muito cedo, dormir pouco, estresse emocional, uso de álcool, uso de drogas ou luzes brilhantes ou piscantes em excesso (luzes estroboscópicas).

Crises de ausência são crises onde há perda súbita, mas rápida, da consciência sem queda (ou seja, o tônus postural fica mantido). Ocorrem em até 30% dos pacientes com EMJ, e podem começar aos 11 anos de idade ou menos. Podem ser tão rápidas, que ninguém, e nem mesmo os pacientes, percebem. 

Diferente das epilepsias mioclônicas progressivas, onde há alteração mental, na EMJ a inteligência é normal durante toda a doença, mas podem haver alterações de cunho psíquico, como imaturidade, instabilidade emocional e dificuldade de ajuste social.

As causas da EMJ relacionam-se à genética, e não há relato de pacientes com EMJ e alterações grosseiras na ressonância ou na tomografia, mas podem haver alterações em exames que determinam a função cerebral. Há relatos de parentes com a mesma doença, ou com doenças parecidas como a epilepsia de ausência da infância, em 50% dos casos de EMJ, e mesmo parentes sem epilepsia de pacientes com EMJ podem ter alterações no eletroencefalograma (EEG).

Gêmeos univitelínicos podem ter a mesma doença, como eu mesmo observei em dois pacientes meus no passado, ambos gêmeos idênticos com EMJ, sendo que um deles, quando criança, havia tido ausências. Mas não se conhece a genética completa da EMJ, mas sabe-se que vários genes podem estar relacionados à doença. 

A doença vem aumentando de frequência, talvez pela melhora no diagnóstico, e hoje possui incidência (número de casos novos em uma população) de 11.9% ou mais. Mas muitos pacientes ainda são não diagnosticados, e portanto mal tratados. 

O diagnóstico baseia-se inicialmente na suspeita da doença (o médico deve saber que ela existe para poder perguntar sobre os sintomas). No entanto, o quadro clínico costuma ser estereotipado, ou seja, os pacientes costumam apresentar os mesmos sintomas, de forma que um neurologista experiente consegue fazer o diagnóstico com pouco esforço. 

O EEG é normal sem as crises e durante o sono, ou seja, um EEG normal não afasta uma epilepsia, mas pode haver padrões entre as crises vistos no EEG em 74% dos pacientes, como descargas breves e as famosas poliespículas-onda (abaixo), assintomáticas.



http://eegatlas-online.com/myapplications/images/eeg0065/eeg0065on.png 

Já o EEG na crise (ictal) possui pontas e ondas, difusas e irregulares. Há meios de se provocar uma crise, e talvez quem esteja lendo este post e já tenha feito um EEG se lembre deles:  a luz que pisca intensamente (luz estroboscópica) e ficar sem dormir durante a noite anterior ao EEG, e ficar sem dormir é um poderoso desencadeante de crises (sim, às vezes temos que estimular o aparecimento de alterações no EEG para podermos fazer o diagnóstico, já que em pessoas sem epilepsia, ficar sem dormir não causa alterações no EEG). 

O exame neurológico na EMJ é normal, e como já falado, tomografia e ressonância do crânio nesta doença serão sempre normais. Seu neurologista pode solicitar estes exames, no entanto, caso esteja querendo provar que é mesmo EMJ (se os exames vierem normais). 

A EMJ é uma doença para a vida, e não cura. Cerca de 90% dos pacientes voltarão a ter crises uma vez que as medicações tenham sido suspensas, de forma que não se aconselha, de forma geral, suspender os remédios nesta doença. Mas a boa notícia é que a EMJ responde bem a doses pequenas de medicações antiepilépticas (DAE). E há a necessidade, também, de modificações no estilo de vida, evitando-se privação de sono, dormindo-se cedo e acordando-se na hora todos os dias, evitando-se álcool e drogas, e evitando-se fadiga. 

Entre as medicações utilizadas nesta doença, e que somente devem ser usadas sob prescrição médica, temos o valproato de sódio, a lamotrigina, o clonazepam, o topiramato, e as modificações no estilo de vida citadas acima.  

Claro que o sucesso no tratamento depende ainda do paciente aceitar a condição, e fazer uso correto das medicações prescritas, obedecendo às modificações de estilo de vida orientadas pelo médico.