terça-feira, junho 19, 2012

O que são doenças autoimunes e o que elas têm a ver com o sistema nervoso?

Doenças autoimunes são um conjunto de afecções que se caracterizam por uma resposta exacerbada, anormal do sistema imunológico em qualquer lugar do corpo. 

Basicamente, nosso corpo é mantido, entre outras cositas mais, por um sistema de células de defesa e ataque contra intrusos. E isso é muito interessante de saber. Você já ouviu falar de linfócitos? E de anticorpos? Pois bem, estas são apenas algumas das linhas de defesa que o corpo possui contra organismos e germes desconhecidos. 

Não vou falar muito disso por que não é bem minha praia, e seria bom um alergista ou reumatologista falar mais disso (reumatologista é o médico que cuida das doenças reumáticas, autoimunes). Mas é bom saber que as alergias, por exemplo, são exacerbações da resposta normal a certos intrusos. São, na verdade, um tipo de inflamação.

Uma pessoa que tem alergia a pelo de gato, por exemplo, apresenta uma resposta exacerbada, intensa, aumentada, quando entra em contato com pelo de gato, havendo recrutamento de células as mais variadas, anticorpos, imunoglobulinas (entre elas, a IgE - imunoglobulinas são proteínas de defesa - temos a IgA, a IgM, a IgG, a IgD e a IgE), imunocomplexos (complexos de ataque a invasores), entre outras coisas.

Isso tudo leva a uma reação chamada de reação alérgica, e se for intensa o suficiente pode levar inclusive à morte. Ora, o nosso próprio sistema de defesa pode nos matar. Isso ocorre por que os órgãos onde este sistema de defesa acaba agindo pode inchar, como a laringe, a via respiratória que dá na traqueia e nos pulmões, dando o famoso edema de glote, ou pode haver inflamação na pele, podendo haver inchaço, vermelhidão, e mesmo descamação da pele como nas queimaduras (um quadro grave chamado de síndrome de Stevens-Johnson).

Mas não se desespere, essas coisas são raras. 

E é sempre bom lembrar que nosso sistema imunológico tem memória, ou seja, há a produção de linfócitos e proteínas que reagem a determinados germes, a certas substâncias. E é essa memória que nos permite pegar catapora ou sarampo somente uma vez, por que nosso sistema imune reconhece e "prende e mata" os vírus da segunda vez, ou não pegar a mesma gripe duas vezes.

E quais os motivos pelos quais as doenças autoimunes se desenvolvem? Em geral, durante o ataque imunológico a alguma coisa, como uma bactéria, um vírus, ou algum organismo, pode ocorrer o que chamamos de reação cruzada, ou seja, algum órgão possui em suas células uma proteína que se parece com uma proteína na superfície da célula que está sendo atacada. Por exemplo, no caso de uma síndrome bem conhecida e já falada neste blog, a síndrome de Guillain-Barré, o ataque a uma bactéria chamada de Campylobacter jejuni, causadora de infecções do trato digestivo, pode fazer com que os nervos sejam atacados, isso por que em alguns casos, e dependendo também de variação genética, a bactéria pode ter em sua superfície uma proteína que se parece, ou que também existem na superfície dos nervos, e desencadear a reação cruzada. Mas este é somente um exemplo, e há vários outros. 

Agora, o que o sistema nervoso tem a ver com tudo isso?

Pois bem. Várias doenças autoimunes causam sintomas neurológicos. Observe bem, o sistema nervoso está distribuído pelo corpo todo. O cérebro está na cabeça, os olhos (pelo menos a retina e os nervos ópticos) fazem parte do sistema nervoso (você sabia disso?), a medula espinhal desce pela sua coluna. Já os nervos estão espalhados pelo corpo todo. Logo, o sistema nervoso é alvo fácil de várias doenças.

E mais, o sistema nervoso tem sua própria patrulha de defesa, a micróglia. E há também o que chamamos de barreira hematoencefálica ou BHE, um conjunto de pequenas defesas nos vasos cerebrais, como células  dos vasos bem compactadas umas nas outras, proteção de células da glia (astrócitos) e outros componentes que impedem que qualquer coisa entre no cérebro através do sangue. Mas os nervos não têm isso.

E ainda mais, quando há uma inflamação no cérebro, a BHE se rompe, e aí que as coisas complicam, pois células do sangue como linfócitos e neutrófilos, além de células limpadoras e que comem lixo, os macrófagos, acabam por entrar no cérebro ou na medula,s fora, é claro, os anticorpos. E é aí que começa tudo.

Tudo se baseia em inflamação, o conjunto de reações celulares e liberação de substâncias (reação humoral) que desencadeia uma série de respostas fisiológicas (normais), mas que levam a respostas patológicas (anormais), com inchaço (edema), lesão celular com morte celular (necrose), disfunção celular e sintomas os mais variados.

Isso ocorre no sistema nervoso em qualquer doença que cause lesão do tecido normal. Derrames levam a inflamações, esclerose múltipla leva a inflamações. E doenças autoimunes levam a inflamações também.

E quais as doenças autoimunes que podem atacar o sistema nervoso? Praticamente todas.

Lúpus eritematoso sistêmico é uma delas, e há vários sintomas neurológicos que podem ocorrer, como derrames, vasculites (inflamação dos vasos de uma determinada região do corpo com lesão celular e obstrução do vaso com isquemia ou lesão por falta de sangue, e neste caso, vasculite cerebral), inflamações dos nervos, e mesmo quadros psiquiátricos.

Idosos com idade maior que 60 anos, em geral, podem ter uma doença chamada de arterite temporal, uma forma de vasculite de artérias da cabeça que pode levar a dor de cabeça, dor para mastigar, dor à palpação ou mesmo toque da têmpora, e perda da visão. Idosos que nunca tiveram dor de cabeça devem ser pesquisados com exame de sangue à procura desta doença, por que ela é tratável, e o tratamento impede o paciente de ficar cego.

Outras doenças como a (lá vêm nomes doidos) poliarterite nodosa ou PAN leva a doença de pequenos vasos podendo dar o que chamamos de neuropatia, ou seja, doença dos nervos que vão para as pernas e pés, com dormência, formigamentos, dor, e mesmo perda de sensibilidade e força nos pés e mãos. É mais comum em pessoas idosas, e mais em homens. A granulomatose de Wegener, a púrpura de Henoch-Schölein, a doença de Churg-Strauss, são todas vasculites que podem acometer o sistema nervoso.

A síndrome de Sjögren é uma forma de vasculite que cursa com olhos e boca secos, podendo dar sintomas semelhantes a AVC (derrame) e problemas de nervos, além de doença a medula espinhal (mielite).

A esclerodermia pode levar a lesões vasculares cerebrais e doenças dos nervos.

E há doenças autoimunes que não são vasculites, como a própria esclerose múltipla, que é classificada nesta categoria também. A síndrome de Guillain-Barré e outras formas de doenças crônicas dos nervos também são autoimunes.

Ou seja, doenças autoimunes podem ser puramente neurológicas, como as descritas no parágrafo anterior, ou mais sistêmicas, mais generalizadas, como as descritas desde o começo deste artigo.

O diagnóstico é clínico, feito pelos sintomas e história do paciente, mas exames de sangue e exames de imagem como ressonância magnética e exame do líquido da espinha ajudam no diagnóstico.

Quanto ao tratamento, sua discussão é demorada e não cabe neste blog. Por serem várias doenças, e muitas terem um tratamento diferente, é melhor que o paciente e/ou familiares discutam com seus médicos a melhor forma de tratamento.