quinta-feira, outubro 23, 2014

Mais sobre autismo

Notícia tirada do site Medical News Today (link) e traduzida livremente para o blog Neuroinformação.

Qual poluído é o ar que respiramos aqui no Brasil? Aqui em São Paulo é bastante. 

Pois um novo estudo fornece mais evidências para a suposta ligação entre exposição a agressores do ambiente (como a poluição) e o risco de desenvolver autismo. 

Pesquisadores viram que crianças com autismo tinham mais chance de terem sido expostas a poluição do ar nos primeiros 2 anos de vida ou durante a gestação do que crianças sem autismo.A pesquisa foi realizada na Universidade de Pittsburgh, EUA. 

O interessante é que a prevalência de autismo e desordens do espectro autista está aumentando. Nos EUA, em 2000, havia 1 criança autista para cada 150 crianças, e hoje, 14 anos após, 1 criança autista para cada 68 crianças (ou 2,2 crianças autistas para cada 150 crianças, um aumento de mais de 100%). No entanto, as causas desse aumento ainda são discutíveis, e vários estudos têm sugerido que a exposição a poluidores ambientes, como pesticidas, pode ser uma causa.

Entre várias substâncias nocivas encontra no ar poluído de grandes cidades ou regiões industriais, temos o estireno (uma substância que, apesar de aparecer em baixas doses na natureza, é utilizada em borracha artificial, isolamentos, fibra de vidro, tubos, componentes para automóveis e embarcações, além de embalagens plásticas de comida, e pode ser formada da queima da gasolina)  e o cromo, elemento químico de número 24, que pode ser encontrado em indústrias de processamento de aço e usinas de produção de energia.

Os pesquisadores fizeram um estudo retrospectivo, ou seja, entrevistaram 217 famílias de crianças com autismo nascidas entre 2005 e 2009, e verificaram se havia ocorrido contato ou exposição a poluição ambiental. Os autores estimaram que cada família esteve exposta a cerca de 30 substâncias que, de acordo com dados da National Air Toxics Agency dos EUA, estão relacionadas a distúrbios de desenvolvimento neurológico e endocrinológico (hormonal). Os autores compararam os dados a famílias de crianças sem autismo das mesmas áreas visitadas, e que nasceram no mesmo período, aumentando, assim, a chance de que seus resultados fossem verdadeiros.

Assim, crianças expostas a estireno e cromo durante a gestação ou até os 2 primeiros anos de vida têm duas vezes mais chance de terem autismo que crianças não expostas.

Outros poluidores, como o cianeto, o cloreto de metila, o metanol e o arsênico, também estão ligados ao autismo.

Que esse estudo sirva de alerta para todas as famílias do Brasil e do mundo, especialmente aquelas que moram em áreas poluídas ou que entram em contato com substâncias nocivas.

Aliás, leia essa matéria da Unimed, e essa aqui, ambas em português.

O que são células-tronco?

A neurologia está cada vez mais expandindo seus horizontes terapêuticos e misturando-se a outras áreas do conhecimento, não somente médicas, mas não médicas, como a robótica, por exemplo.

Nas áreas de reabilitação, retorno de funções perdidas por conta de derrames e traumas, e doenças neurodegenerativas, como a esclerose múltipla, a doença de Parkinson e a doença de Alzheimer, muito ainda há o que se fazer para recuperar os pacientes lesados por estas e mais doenças. 

Em 1961, no Canadá, sugeriram a existência de células-tronco através de estudos de radiação. Em 1978, descobriram-se células-tronco, ou seja, células que podem, sob os estimulantes adequados e em meios adequados, produzir outros tipos de células, na medula óssea, e estas células começaram a ser cultivadas em laboratório a partir de 1981 (o que levou, inclusive, à primeira clonagem de uma ovelha, a Dolly, em 1997). 

Em 2005, cientistas ingleses descobriram células-tronco embrionárias no tecido do cordão umbilical, que supostamente podem se diferenciar (se transformar) em mais células do que as células-tronco da medula óssea. Já em 2007, do líquido amniótico (o líquido que banha o feto durante a gestação), foram descobertas novos tipos de células-tronco. O interessante é saber que há células-tronco em organismos já vivos e adultos, pois o uso de células-tronco de embriões humanos criados somente com o propósito de fornecê-las (células-tronco embrionárias) é eticamente e religiosamente discutível (na minha opinião).

Bem, e o que são realmente células-tronco e qual o seu uso na neurologia?

Células-tronco (CeTr) são uma classe de células não diferenciadas, ou seja, não maduras, que são capazes de se especializar em vários tipos celulares, e que provêm de fontes embrionárias ou de tecidos adultos.  Podem se diferenciar em pele, músculo, tecido cardíaco, e provavelmente tecido neural. Vamos falar somente das CeTr adultas.

As CeTr adultas existem em várias partes do corpo, dentro de vários tipos de tecidos humanos, como o cérebro (há CeTr na porção periventricular, ou seja, ao redor dos ventrículos cerebrais, e em núcleos cerebrais como o estriado), medula óssea, sangue e vasos sanguíneos, músculos esqueléticos, pele e mesmo no fígado. Elas permanecem em estado quiescente (paradas, quietas), até que sejam necessárias para se transformarem em novos tecidos por lesões ou doenças. Estas células podem se dividir indefinidamente, podendo gerar vários tipos de células diferentes a depender da necessidade do órgão (e isso tem a ver com a liberação de substâncias específicas que vão direcionar a formação de uma ou outra célula - é essa mistura de substâncias certas em meios certos que ainda não conhecemos completamente, até porque pode ser que haja mais substâncias liberadas pelo corpo que ainda não temos conhecimento). O fígado pode ser regenerar por conta dessas CeTr. E apesar de uma CeTr do fígado se transformar em células do fígado, por exemplo, ou CeTr da pele se transaformarem em células da pele, há evidências de que CeTr de vários locais podem se transformar em outras células de órgãos distantes.

As CeTr são extraídas e colocadas em um meio de cultura próprio, com todas as substâncias necessárias para sua sobrevivência e diferenciação, produzindo uma linhagem de células que podem ser utilizadas em tratamentos ou estudos.  

Em neurologia, estas CeTr têm sido testadas há muito tempo, desde a década de 80, quando CeTr cerebrais foram descobertas (mais precisamente em 1989). Em posts posteriores, vamos falar mais sobre o uso de CeTr em doenças neurológicas específicas.

segunda-feira, outubro 20, 2014

Paralisia cerebral

A paralisia cerebral (PC) é um termo usado para designar um conjunto de doenças que começam na infância, caracterizadas por anormalidades na marcha, na postura de braços, pernas e tronco, e no grau de relaxamento dos membros (tônus muscular), alterações estas que não progridem (ou seja, permanecem as mesmas durante toda a vida do indivíduo), e que são causadas por lesões cerebrais durante a gestação, o parto, ou logo após o parto, enquanto o cérebro está em desenvolvimento.

A PC foi descrita pela primeira vez na década de 60 do século XIX por William John Little, um cirurgião inglês, que descreveu a doença a partir de sua própria incapacidade - ele havia contraído paralisia infantil, tendo desenvolvido atrofia da perna esquerda e pé esquerdo torto, algo que foi corrigido por um cirurgião alemão, Louis Stromeyer, em uma técnica que é utilizada até hoje com alguns avanços no alargamento dos tendões dos pés (tenotomia). A PC, por muito tempo, foi conhecida como doença de Little.

Até Freud, em 1897, deu sugestões em relação às causas da PC, sendo ele o primeiro a sugerir que doenças durante a gestação poderiam causar a síndrome. Ainda em 1987, o pai da Clínica Médica, Sir William Osler, médico canadense, publicou um livro sobre a PC, classificando-a (foi a primeira vez que apareceu uma classificação da doença). Finalmente, a visão de Freud de uma causa bem antes do parto para a maior parte dos casos de PC foi demonstrada em um estudo de 1986. Claro que a anóxia perinatal, ou seja, a falta de oxigênio durante o parto, é ainda uma causa importante de lesão cerebral na criança, ainda hoje em países como o Brasil.

A avaliação clínica atual da PC depende dos achados do exame neurológico e do local dos sintomas e sinais. Saber se a criança tem mais aumento do tônus (dificuldade de relaxar os membros, com braços e/ou pernas tensos e enrijecidos, como na espasticidade), diminuição do tônus (membros molinhos, como na hipotonia), ou movimentos anormais (coreia, balismo, diminuição da velocidade e amplitude dos movimentos) e saber se a doença afeta as pernas, os braços, ambos ou um lado do corpo, auxilia na determinação da causa, e mais ainda, na forma de tratamento médico e de reabilitação.

A espasticidade é a forma clínica mais comum de PC. Espasticidade refere-se a um aumento do tônus, ou seja, uma incapacidade de relaxar um membro ou um lado do corpo, ou os quatro membros, sendo que ele fica duro, tenso, e sempre em uma mesma posição. A espasticidade pode ser vista em qualquer doença que lese o cérebrou ou a medula, como em traumas, derrames, esclerose múltipla, tumores, ou na PC. O paciente com PC e com espasticidade também tem fraqueza dos membros. Assim, temos as paralisias espásticas, ou seja, membros fracos para realizar movimentos voluntários, mas fixos e duros em uma posição.

Quando os sintomas de fraqueza são em ambos os membros dos dois lados, temos as quadriplegias. Se são somente nas pernas, termos a paraplegias. Se são em um lado do corpo, temos as hemiplegias. Nos pacientes com PC, assim, temos as quadriplegias espásticas, as paraplegias espásticas e as hemiplegias espásticas.

A PC pode não vir somente com estes sintomas, mas com um cortejo de outros sinais e sintomas, como problemas ortopédicos, como o pé torto congênito (veja abaixo), crises epilépticas, desordens mentais e de cognição (ou seja, das capacidades de linguagem e raciocínio), e prejuízos da visão ou audição. Além do mais, crianças prematuras têm mais chance de desenvolver estas doenças (isso porque a criança pode nascer prematura por conta da mesma doença que causa a PC). 

http://www.orthopediatrics.com/binary/org/ORTHOPEDIATRICS/images/page/child_foot_clubfoot_anatomy04.jpg
Acima, um exemplo de pé torto congênito.

Várias síndromes genéticas podem aparecer em crianças com PC, especialmente na forma hipotônica, ou seja, na forma em que há diminuição da força e da tensão dos músculos. 

Retardo do início da linguagem, estrabismo, dificuldades de falar ou engolir (disartria e disfagia), crises epilépticas (em geral começando nos primeiros anos de vida), problemas mentais (em metade dos pacientes com PC), dificuldades com visão e audição, retardo no crescimento, doenças respiratórias (que podem ser causadas pelas dificuldades para engolir, causando aspirações de conteúdo do estômago e pneumonias frequentes), refkuxo do estômago, doenças dentárias (de múltiplas causas), deformidades do peito, dificuldade para respirar, disfunção da bexiga (crianças que não conseguem deixar de urinar na cama). 

Em geral, o diagnóstico de PC é feito entre o primeiro e o segundo anos de vida, mas pode ser feito somente mais tarde. Muitas doenças genéticas podem ser incluídas, como já citado acima, nas causas de PC. Exemplos que poderão ser discutidos em posts posteriores são a síndrome de Prader-Willi, a síndrome de Angelman, doenças das mitocôndrias, distrofia miotônica infantil, e outras causas. Além disso, malformações do córtex cerebral (que serão discutidas em posts posteriores) como a lisencefalia, a esquizencefalia, a polimicrogiria, etc... pode causar PC com retardo de desenvolvimento e crises epilépticas. 

Os primeiros sinais de PC podem ser dificuladade de coordenação da cabeça ou tronco (crianças que não sustentam a cabeça ou conseguem ficar sentados após a idade determinada para isso), crianças que permanecem com uma das mãos e/ou braço em contração (fechados) permanentemente, crianças que não conseguem acompanhar os marcos motores (engatinhar, sentar, andar) quando se espera que façam isso, e outros sintomas melhor determinados por um neuropediatra. Há reflexos que existem em crianças de até 8 ou 12 meses de idade, e que vão normalmente desaparecendo aos poucos. Em crianças com PC, estes reflexos ditos primitivos acabam por permanecer, não desaparecendo como deveriam (esses reflexos podem ser discutidos em post posterior, mas para sanar quaisquer dúvidas pessoais, refira-se a um neuropediatra).

Claro que, para podermos apreciar tudo isso, um exame geral deve ser feito pelo neuropediatra. A observação da criança brincando, rolando no chão, tentando se levantar, sentando, tentando ficar em pé, é preciosidade que deve ser sempre investigada pelo médico, pois consegue-se assim observar a criança em seu estado natural, espontâneo, daí conseguindo extrair informações importantes com relação a posturas, déficits motores, tônus muscular e incapacidades. 

Há estudos que demonstram que 70 a 80% dos casos de paralisia cerebral provêm de causas durante a gestação, como malformações, doenças genéticas e alterações de cromossomos da criança (anóxia perinatal sendo responsável por 10% dos casos). As criança prematuras, especialmente as que nascem antes das 26 semanas de gestação, estão em maior risco de desenvolver PC. Outras causas de PC, comuns em países subdesenvolvidos como o nosso, são o que chamamos de TORCH (infecções durante a gestação ou período perinatal por toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes vírus). Doenças da mãe, como diabetes, hipotireoidismo, epilepsia, podem causar problemas na criança quando não há tratamento adequado destas condições. O uso de álcool ou fumo pela mãe também podem contribuir para o risco de PC na criança. 

Doenças do metabolismo, geralmente doenças genéticas que afetam uma ou mais crianças, podem causar PC. Estas doenças são de dificil diagnóstico, e geralmente devem ser avaliadas por pediatra, neurpediatra ou geneticista conhecedores destas doenças. Muitas delas possuem tratamento através do uso de medicações ou restrições alimentares específicas. Um exemplo clássico, comum e que é diagnosticado pelo teste do pezinho é a fenilcetonúria (leia sobre ela aqui), causada por uma deficiência de uma enzima que metaboliza um aminoácido, a fenilalanina, presente em vários alimentos, como em certos refrigerantes. 

Outras doenças que podem causar PC são derrames que podem acontecer antes ou durante o parto (sim, recém-nascidos ou fetos podem ter derrames, geralmente causados  por traumas, infecções que a mãe pode ter como citomegalovírus e toxoplasmose, durante o parto por traumas do parto ou queda e oxigênio cerebral, doenças genéticas, inflamações vasculares, as vasculites, que podem ocorrer na mãe, prematuridade, etc). 

A PC não é rara, e acomete, nos EUA, 3.6 crianças por 1000 nascidos vivos (ou seja, contando-se somente as crianças que nasceram vivas). Aqui no Brasil este número é maior, por conta de baixas qualidades de infraestrutura e saúde em várias regiões do Brasil. Prematuridade associa-se fortemente a PC (o que não indica que toda criança prematura terá algum problema, mas sim que algum problema pode ter desencadeado a prematuridade). Claro que a melhor infraestrutura de UTI's neonatais favorece um melhor cuidado dessas crianças, além do desenvolvimento científico e do maior conhecimento em saúde neonatal pelos médicos e profissionais de saúde hoje. 

E como revenir a PC? No momento atual, a maior parte dos casos é difícil de prever ou prevenir, e a incidência de PC (ou seja, o número de novos casos em um período de tempo) tem se estabilizado nos últimos 20 anos. Mas há causas preveníveis ou tratáveis:

Vacinações da mãe quando do pré-natal contra doenças que causam PC como rubéola, tratamento das infecções que a mãe possa vir a ter, prevenção de acidentes com a mãe no período pré-natal, e com a criança após o parto, tratamento do hipotireoidismo e do hipertireoidismo na mãe, o uso adequado de iodo pelas mães já nos primeiros meses de gestação (o iodo é elemento necessário para o bom funcionamento a tireoide, e já é suplementado aqui no Brasil no sal que consumimos - leia sobre isso aqui), a suplementação de ácido fólico, e outras medidas que podem ser discutidas com o pediatra e o ginecologista/obstetra.

No diagnóstico das causas de PC e no seu tratamento, vários especialistas médicos e não médicos devem unir forças, como o neuropediatra, o pediatra, o fisiatra (o médico que se preocupa com a reabilitação física de pacientes com dores e sequelas ortopédicas e neurológicas), o fisioterapeuta e o terapeuta ocupacional. Psicólogos devem se preocupar também com o tratamento da criança além da ansiedade e apreensão dos pais.

O diagnóstico, como qualquer coisa em medicina, começa com uma história clínica feita pelo médico que deve avaliar o curso da gestação, parto e horas e dias após o parto. Conhecer a história familiar é importante para descartar doenças genéticas que podem ser a causa dos problemas. Perguntas sobre o desenvolvimento da criança, quando começou a engatinhas, sentar, andarm falar, além da visão, audição, alimentação, funcionamento do intestino e bexiga, além de problemas cardíacos, pulmonares, da pele, devem ser feitas. 

O exame clínico deve focar tudo, como a pele, cabeça, face, coração, pulmão e membros, O exame neurológico deve ser feito procurando movimentos anormais, posturas erradas, persistência de reflexos que aparecem nos primeiros meses do nascimento, mas que logo devem sumir. Em crianças maiores, a avaliação da marcha, de como a criança está andando e ficando de pé deve ser feito em conjunto com um fisiatra ou fisioterapeuta, além do terapeuta ocupacional. 

Exames de sangue, genéticos, ressonância magnética e outros exames devem ser feitos somente se solicitados pelo médico. Uma avaliação neurpsicológica pode ser feita para avaliar a parte mental e cognitiva da criança. Especialistas recomendam que toda criança com PC deve ter uma avaliação oftalmológica para detectar anormalidades oculares e tratar problemas como miopia, que frequentemente aparecem em conjunto. 

Em relação a técnicas de tratamento, estas devem ser individualizadas para cada paciente. Poderemos falar mais sobre isso em post posterior.

quarta-feira, outubro 08, 2014

O uso de toxina botulínica na paralisia cerebral

Postagem escrita pela estudante de medicina de Lisboa, Portugal, (futura neurologista e nossa primeira convidada internacional) Ana Rita Medeiros, e cedida gentilmente ao blog Neuroinformação (com modificações devido aos aspectos estilísticos e ortográficos da língua portuguesa original)



A toxina botulínica (BnT) ou mais comumente conhecida como Botox (sua formulação comercial mais antiga) também tem aplicações além das rugas e marcas de expressão. De fato, há tempos discute-se o uso da BnT para o tratamento, juntamente com a fisioterapia, de casos de paralisia cerebral.

Em primeiro lugar, será necessário explicar o que é a BnT. A BnT é um complexo proteico puro obtido a partir de uma bactéria, o Clostridium botulinum, a bactéria causadora da doença conhecida como botulismo. Esta bactéria produz 7 formas da toxina (de A a G) mas apenas uma é usada como tratamento no Brasil, a toxina botulínica tipo A (BnTA) (o sorotipo BnTB é utilizado nos EUA e alguns países europeus). A BnT bloqueia a liberação de acetilcolina, um neurotransmissor que age, também, ao nível dos músculos, prevenindo que o músculo receba a mensagem vinda do nervo, e logo, impedindo que o músculo contraia de forma adequada. O músculo, então, e mesmo em estado relaxado, não recebe ordem para se contrair o que, a nível da pele e em pequenas doses, permite suavizar as rugas de expressão pelas quais o Botox é tão conhecido.
 
Contudo, existe ainda uma outra vertente de aplicação que tem sido estudada, a da paralisia cerebral. A paralisia cerebral é uma das doenças mais incapacitantes na infância, e que se caracteriza por ser uma lesão estática (que não progride com a idade) do cérebro em desenvolvimento, o que leva a incapacidades a nível da postura do corpo, tronco, membros e movimento. Tal como dito anteriormente, é uma lesão não progressiva, ou seja, assim que ocorre a lesão, esta não sofre evolução. Um dos maiores problemas relacionados com esta lesão é a espasticidade, o aumento involuntário, espontâneo, do tônus muscular, sendo que o músculo fica tenso, imobilizado em uma posição fixa, e cuja tentativa de mobilização leva a dor. 

A espasticidade pode vir isolada ou estar associada a outras formas de movimentos anormais, como distonias ou ataxia (incoordenação). A espasticidade caracteriza-se por aumento do tônus muscular com aumentos os reflexos testados com o martelinho (hiperreflexia). Além disso, um doente com espasticidade apresenta uma postura anormal por contração dos músculos da coluna com deformidades musculoesqueléticas, dor, alterações e limitações no movimento e possível incontinência de esfíncteres (dificuldade de segurar as fezes e/ou a urina). Nas crianças, a espasticidade causa também uma limitação no desenvolvimento e crescimento muscular.

Os primeiros estudos que demonstraram uma relação da BnT com o tratamento da paralisia cerebral datam de 1994 (Cosgrove et al, Koman et al). Como foi dito acima, a BnT inibe a ligação da acetilcolina com os receptores no músculo, daí impedindo a transmissão nervosa e aliviando a contração muscular mantida no paciente com paralisia cerebral, permitindo, a curto prazo, o movimento e a longo prazo, o crescimento, evitando o desenvolvimento de deformidades e permitindo um melhor tratamento com as técnicas de fisioterapia.

Os estudos que têm surgido nestes últimos anos conduzem a um aconselhamento do uso da BnT em uma idade precoce, com preferência entre os 2 e 6 anos e principalmente a nível dos membros inferiores.
 
Além dos benefícios acima referidos, a toxina botulínica também impede crises dolorosas em pacientes com contrações dos adutores das coxas (os adutores das coxas são os músculos que auxiliam a fechar as pernas, juntando uma coxa na outra, e pacientes com paralisia cerebral apresentam com muita frequência contração involuntária destes músculos com dor, incapacidade de abrir as pernas, dificuldade de andar, e nos pacientes mais graves, dificuldades com a limpeza e higiene da região íntima), adia a necessidade de cirurgia ortopédica, diminui espasmos e permite uma movimentação mais facilitada, assim como impede assimetrias entres os membros.

O tratamento com o uso de BnT deve ainda ter sua dose ajustada ao peso do paciente e ter objetivos bem definidos, principalmente na escolha de quais os grupos musculares de interesse para a aplicação, daí a necessidade de se iniciar precocemente o procedimento, que o paciente se beneficiará de um melhor prognóstico, especialmente se o uso da BnT for combinado com um intenso tratamento fisioterápico.

terça-feira, outubro 07, 2014

Paralisia pseudobulbar

Paralisia pseudobulbar é uma síndrome, ou seja, um conjunto de sinais e sintomas cujas causas podem ser variadas. Paralisia é um termo, aqui, errôneo, mas que serve para a definição, indicando uma fraqueza ou incapacidade de realizar certas atividades. Neste caso, as atividades são, principalmente, a fala e a deglutição. Assim, na paralisia pseudobulbar, há dificuldade com a fala (disartria) e dificuldade de engolir com engasgos frequentes (disfagia). Mas há outros sintomas e sinais que podem ocorrer nestes casos.

Bem, pseudobulbar significa que a paralisia engana a quem examina, pois quem examina e não conhece a situação pode acreditar que a doença se encontra no bulbo (medula oblonga), o que não é verdade. Aliás, o termo pseudo, do grego, significa falso, que engana. Logo, pseudobulbar significa que parece, mas não é, no bulbo. E o que o bulbo tem a ver com isso?

O bulbo ou medula oblonga (como aprendemos na escola) é a última parte do tronco cerebral, e que faz a união do encéfalo com a medula espinhal (em inglês, bulbo é chamado de medulla). No bulbo, estão localizados núcleos para várias funções cerebrais, todos compactados e conectados com centros mais altos. Aqui há os centros para a fala, para a deglutição, para a movimentação da língua, centros integrativos de choro e riso (sério!), o centro respiratório, o núcleo do nervo trigêmeo passa também por ele, etc... Observe o bulbo abaixo:

http://brainmadesimple.com/uploads/7/8/8/5/7885523/_1801071.jpg

Abaixo, um corte do bulbo, mostrando como as estruturas dentro dele ficam todas compactadas, próximas umas às outras:


http://etc.usf.edu/clipart/54000/54050/54050_medulla_lg.gif


Logo, uma dificuldade para falar, para engolir e engasgos pode ser facilmente localizada no bulbo.

Observe a figura acima. Veja na parte mais baixa da figura o nome PYRAMIS. Estes são os famosos tratos corticospinhais ou tratos piramidais, que transmitem informação de motricidade para os músculos e que descem para a medula espinhal. Mas qual a importância dele aqui?

Bem, antes de falar da importância dele, por que mesmo que chamamos a síndrome de paralisia pseudobulbar? Por que achamos que a lesão está no bulbo, mas não está. E onde, então, ela está?

As lesões que causam paralisia pseudobulbar se encontram, na verdade, bem mais acima, no próprio cérebro. Múltiplos derrames, múltiplas lesões cerebrais, hematomas subdurais, atrofia cerebral grave, demência avançada (como doença de Alzheimer), múltiplas lesões de esclerose múltipla, certas doenças como a paralisia supranuclear progressiva (PSP, sobre a qual poderemos falar em outro post) e outras situações é que causam a paralisia pseudobulbar. E o que isso tem a ver com o bulbo??

Daí, temos que falar rapidamente de uma via que desce do cérebro, pelo tronco cerebral, para os vários núcleos do tronco, o trato corticonuclear. 

Observe abaixo:

http://images.slideplayer.com.br/1/76582/slides/slide_25.jpg
Este é seu trato corticonuclear. Através desta via importantíssima, o cérebro consegue inervar todos os núcleos motores do tronco cerebral, fornecendo não somente inervação como levando nossa vontade a eles. Por conta desse trato, podemos sorrir de forma espontânea e voluntária, mexer a língua, mastigar ou parar de mastigar quando queremos, mexer conforme nossa vontade nossos olhos, etc... É esse trato que une os núcleos do tronco cerebral ao cérebro, e logo, à nossa consciência. 

Mas nas doenças que falamos no parágrafo anterior, as doenças do cérebro que causam a paralisia pseudobulbar, há lesão desta via, e logo, perda da inervação e núcleos importantes, especialmente os do bulbo, que nos ajudam a falar e a engolir. Logo, na paralisia pseudobulbar, há fraqueza e disfunção de vias próprias do bulbo, não por lesão do bulbo, mas por lesão desta via cortinuclear que vem de cima e inerva o bulbo. Por isso o termo pseudobulbar. 

Na paralisia bulbar verdadeira, há atrofia (perda de massa) e hipotonia (perda da força em repouso, amolecimento) da língua, de um lado ou de ambos; há paralisia do palato (quando o paciente abre a boca e fala aaaaaaaaaaaaaaah, aquele sininho que fica lá no final da boca, a úvula, ou não levanta ou se mexe somente para um lado). 

Estas coisas não acontecem  na paralisia pseudobulbar, e neste caso, o paciente pode ficar, ao invés, com incapacidade de colocar a lígua para fora, não por fraqueza, mas por, digamos, incapacidade de saber como fazê-lo (chamamos de apraxia), incapacidade de abrir a boca pelo mesmo motivo (não consegue fazer de modo voluntário, conforme a vontade, mas o faz de forma reflexa), reflexos de face exaltados, há dificuldade para andar e desequilíbrio, podendo haver quedas. 

Mas há duas outras coisas que acontecem na paralisia pseudobulbar que não acontecem na paralisia bulbar verdadeira. O paciente tem choro ou riso imotivados, ou seja, o paciente chora, de repente, de forma explosiva, sem motivo para chorar, e para de chorar como se nada tivesse acontecido. Ou ri, mais raramente, sem motivo, explosivamente, e para como se não tivesse havido nada.

Bem, é isso que temos para falar sobre paralisia pseudobulbar. Quaisquer dúvidas, podem acessar o blog no Facebook (https://www.facebook.com/pages/Neuroinforma%C3%A7%C3%A3o/251541844877993) e fazer suas colocações e perguntas.

segunda-feira, outubro 06, 2014

Dor de cabeça na gestação

Post adaptado do artigo sobre Cefaleia na Gestação, do Neurologic Clinics of North America (link).

A gestação pode ser um dos períodos mais intensos e felizes da vida de uma mulher. Muitas, ou talvez, a maior parte das mulheres completa-se com uma criança em seu ventre. E para muitas, a vida assume um novo sentido com uma criança a qual podem chamar de filho. 

No entanto, a gestação também pode ser acompanhada de doenças, e muitas são neurológicas. Nesse tópico, vamos falar sobre uma das várias síndromes que pode acometer uma gestante, a dor de cabeça (ou cefaleia).

As cefaleias primárias (como a enxaqueca e a cefaleia tensional - veja aqui o que é uma cefaleia primária) são mais comuns nas mulheres, em especial no seu período fértil, ou quando as chances de gestação são maiores. Além disso, essas cefaleias podem ser influenciadas por flutuações hormonais que ocorrem, por sinal, a rodo no período gestacional. Mas também, na gestação, podem haver cefaleias secundárias (quando há uma causa para a dor de cabeça), e um dos trabalhos do médico neurologista é justamente identificar se, na gestante, há uma causa para a cefaleia.

Sabemos que em uma boa parte das mulheres (60 a 70% de acordo com alguns estudos), a enxaqueca melhora na gestação. Mas não é em todas as mulheres, e há paciente nas quais não há alterações identificáveis na intensidade e na frequência de dor de cabeça, e há pacientes em que a dor mesmo piora durante a gestação. Mas interessante é o fato de que quanto mais gestações, menor a chance de haver melhora da enxaqueca durante a gravidez. Já a lactação pode manter a melhora da dor de cabeça quando a gestação já cursou com essa melhora (mais um ponto a favor da amamentação!). 

Além do mais, crises de enxaqueca no período gestacional associam-se a risco de pressão alta, e deve ser tratada de forma adequada. Com relação à cefaleia tipo tensional (veja rapidinho sobre ela aqui), cerca de 28% das pacientes obtêm melhora na gestação, e cerca de 67% não relatam modificação alguma. 

E as pacientes que apresentam nova forma de dor de cabeça durante uma gestação? A maior parte desses casos está relacionada a existência de enxaqueca prévia à gestação. Mas claro que uma dor de cabeça nova, que nunca existiu, e que aparece na gestação deve ser investigada por um neurologista em comum acordo com o ginecologista-obstetra da paciente.

Cefaleia após o parto pode ocorrer mais frequentemente na primeira semana após o parto. Uma boa parte dos casos pode estar relacionada à enxaqueca mesmo, mas dores musculares, dores causadas por inflamações e tensão da musculatura cervical, dor pós-punção liquórica (dor de cabeça causada por punção liquórica, que ocorre em cerca de 40% dos pacientes que fazem punção ou raquianestesia, e melhora em dias), ou sem diagnóstico definido. 

A enxaqueca não causa grandes problemas, em geral, na gestação (já falamos que em algumas pacientes, a existência de enxaqueca pode levar a hipertensão na gestação). Além disso, aparentemente há risco de pré-eclâmpsia na gestação quando há concomitância de crises de enxaqueca de acordo com vários estudos. E além disso, e conforme já discutido em outros posts deste blog, enxaqueca na gestação pode (eu disse pode) aumentar os riscos de derrame (AVC) durante a gestação (risco de 11 a 26 casos por 100,000 gestações, ou de menos de 0,1%). 

Ou seja, a recomendação por enquanto é:

Pacientes com enxaqueca devem tratar sua dor de cabeça antes de engravidar. E se a gestação for não planejada, a enxaqueca deve ser acompanhada por um neurologista e o ginecologista-obstetra da paciente.

E quanto às cefaleias secundárias? Aquelas que possuem causa identificável, e que pode ser beingnas ou não? Bem, mulheres gestantes ou após a gestação podem ter dores de cabeça pelos mesmos motivos que mulheres fora do período gestacional, ou seja, dores por lesões da coluna cervical (a coluna do pescoço), lesões da mandíbula, sinusites, infecções de ouvido ou garganta, lesões musculares, etc. 

Mas há causas de dores de cabeça que são mais comuns ou exclusivas do período gestacional, como a eclâmpsia ou pré-eclâmpsia (pressão alta, dores de cabeça, crises epilépticas, e outros sintomas e sinais), derrames (que podem ocorrer especialmente em mulheres que fumam, que são hipertensas, diabéticas, obesas), lesões vasculares cerebrais por inflamação, trombose venosa cerebral, etc. Nestes casos, como sempre, uma boa história da doença e um bom exame neurológico e exame geral feitos pelo médico associados a exames direcionados para as causas suspeitadas acabam por ajudar a dar o diagnóstico. 

Na mulher gestante, deve-se evitar o uso de exames de imagem, como a tomografia e a ressonância, esta especialmente no primeiro trimestre de gestação, pelos possíveis riscos ao feto. Mas sugere-se realizar os exames se o benefício for muito maior que o risco, ou seja, se o diagnóstico da causa da dor de cabeça depender dele. O uso de contrastes na tomografia (iodo) ou ressonância (gadolíneo) só deve ser usado se, novamentem o benefício ultrapassar o risco, e isso deve ser decidido pelo médico em consulta. O uso de contraste iodado na gestação pode causar hipotireoidismo (diminuição da função da glândula tireóide) na criança. Na amamentação, pode-se usar o contraste conforme indicação médica, pois somente mínimas quantidades dele passam para o leite. 

Na verdade, no período gestacional, o diagnóstico das causas de dor de cabeça deve depender mais da história e do exame neurológico e clínico, realizados por neurologista competente, do que de exames radiológicos. Exames de sangue devem ser coletados quando indicados. A coleta de líquido da espinha na gestação está indicada quando da suspeita de meningite ou para checar a pressão de dentro da cabeça quando da suspeita de pressão alta intracraniana, mas deve, na minha experiência, sempre ser precedida por um exame de imagem (neste caso, ressonância, que não usa radiação como a tomografia, mas campo magnético, que aparentemente não é prejudicial ao feto após o primeiro trimestre de gestação). Um exame interessante, que ajuda muito na averiguação de causas de dor de cabeça, e deve sempre ser feito por ser inócuo, é o exame de fundo de olho (leia mais sobre ele aqui e aqui). 

Com relação ao tratamento da dor de cabeça em mulheres gestantes e que estão amamentando, este deve ser um post a parte, e não será discutido aqui.