quinta-feira, outubro 11, 2012

Pequeno dicionário de termos médicos - Truque sensitivo

Bem, ainda não vamos falar de mágica neste blog, mas sim de truque, truque sensitivo ou em francês, geste antagonistique. Mas o que é um truque sensitivo?

Em primeiro lugar, é importante sabermos que um truque sensitivo é algo bastante comum em uma doença chamada distonia (leia mais sobre isso aqui). A distonia leva a contrações exageradas, involuntárias (sem nossa vontade, espontâneas), de uma parte do corpo, e há geralmente contração simultânea de agonistas (músculos que fazem um movimento) e antagonistas (músculos que vão contra aquele movimento).

A distonia tem inúmeras causas, mas todas as causas parecem convergir para problemas nos núcleos da base (leia mais sobre eles aqui) e o próprio córtex cerebral. O que se supõe é que há uma reorganização do córtex ( e isso não é fácil de entender).

O córtex cerebral é organizado em camadas celulares. Dependendo da área do córtex (córtex parietal, temporal, frontal, occipital), as camadas e os tipos celulares variam. Observe abaixo:

http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/bilhoes-de-neuronios/imagens/colunacortical.jpg/image_preview
À esquerda, um desenho das camadas corticais, e à direita, uma imagem real destas células. os neurônios agem em circuitos elétricos integrados, tal como um computador, com neurônios de excitação (geradores da transmissão de impulsos nervosos) e neurônios de inibição (impedidores da geração destes impulsos). Os neurônios excitatórios liberam um neurotransmissor chamado de glutamato, e os inibitórios, o GABA, ou ácido gama-amino-butírico. Leia mais sobre circuitos cerebrais integrados aqui.

Estes mesmos neurônios recebem e mandam informações aos núcleos da base, e modulam a resposta e são modulados pelos núcleos. Cada desejo de mover uma parte do corpo é inicialmente manifestado inconscientemente, havendo disparos corticais e subcorticais que levam à manifestação motora, o ato de mover o membro. E há no cérebro um córtex motor, e um córtex sensitivo, responsáveis, primariamente, respectivamente pela geração de movimento e pela sensibilidade cutânea e muscular de um segmento específico.

Este córtex motor organiza-se de forma somatotópica, ou seja, a cada uma de suas partes corresponde uma parte do corpo. Observe abaixo:

http://thebrain.mcgill.ca/flash/i/i_06/i_06_cr/i_06_cr_mou/i_06_cr_mou_1a.jpg
A área vermelha na figura é o córtex motor. Observe que ele se estende lá de baixo, próximo ao lobo temporal, até a parte de dentro do cérebro, a sua parte medial. E a cada área, corresponde uma área do corpo, cuja representação no córtex é maior ou menor a depender da importância sensitiva e motora da região. Não entendeu? Vou explicar.

Cada parte do seu corpo é, em termos motores, representada no córtex cerebral de uma forma que represente sua inervação. O seu polegar e sua mão têm uma representação enorme no córtex, justamente por que o polegar consegue fazer dezenas de movimentos diferentes. Sua boca e língua, pela importância sensitiva e motora, também têm uma grande representação. Já seus braços, pernas e tronco têm uma representação menor, pois a quantidade de movimentos em relação às extremidades é menor. 

E também a cada região, relaciona-se uma parte do corpo, de tal modo que a área motora externa está relacionada à boca e braços/mãos, enquanto que a área interna relaciona-se às pernas.

Observe o que estou falando em uma imagem, que demonstra o que Wilder Penfield, neurocirurgião canadense da década de 1940, acabou por descobrir com seus pacientes epilépticos, o homúnculo de Penfield:

http://www.cerebromente.org.br/n18/history/motor-homunculus.jpg

E abaixo, a figura do homúnculo (que você, talvez, já tenha visto em algum livro de medicina ou em algum consultório), mostrando a maior representação da boca e das mãos em detrimento do resto do corpo:

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj-JxNBEeiWEplxonxci_IeFaAH0sEkA-u2mO6AndI_txteTb7scLhFrp7H0YDT3iFBM_ojuO5c09cJOMSP-zumlyLL5AEbFUBcoFu1fCreG8Sahj73XEdLA9Z7BkoGhtQLtLnmttZrSuw/s1600/homunculus1.jpg
Essa figura me assustava muito na minha infância!!

Muito bem. cada região cerebral cuida de suas funções, mas não é sempre assim, e há o que chamamos de neuroplasticidade, ou seja, a capacidade de um grupo neuronal ou uma região cerebral de se readaptar a novas situações. A adaptação ocorre por conta de modificações funcionais (fisiológicas) e estruturais, ocorrendo após doenças, como derrames ou traumas cerebrais, mesmo após estímulos repetidos. É a neuroplasticidade que nos permite desenvolver a habilidade com a mão esquerda, sendo nós destros, ou de aprender a tocar piano, ou de reaprender a escrever e falar após um derrame. Ou seja, o cérebro é capaz de se rearranjar. Mas nem sempre para o bem, podendo ocorrer por conta de doenças.

Mas o que isso tem a ver com truques sensitivos? Vamos explicar agora!

A distonia ocorre, entre outras coisas, por conta de alterações nesta plasticidade. Ou seja, há contrações sustentadas involuntárias de um grupo muscular, que por conta de rearranjos celulares neuronais e de malhas neuronais, acaba se espalhando para outros grupos musculares (o que chamamos de fenômeno de overflow). Se você tem cãibra do escrivão (leia mais sobre isso aqui) ou outra distonia de ação, que ocorre quando realizamos alguma atividade, pode observar que ao realizar o movimento, outros músculos, que normalmente não participariam do movimento, acabam por ser solicitados e contraem. Essa plasticidade ocorre aqui.

Já alguns outros pacientes possuem movimentos distônicos que pioram quando o paciente fala, anda ou mesmo deita - situações que claramente demonstram uma estimulação neuronal anormal, pois uma situação que nada tem a ver com a distonia a desencadeia.

E há os truques sensitivos, que se baseiam no fenômeno da neuroplasticidade e estimulação neuronal.

O truque sensitivo (em inglês, sensory trick) é uma ação ou movimento voluntário que os pacientes com distonia fazem que inibe, temporariamente, o fenômeno distônico, fazendo alguns menos conhecedores do problema achar que se trata de uma doença psíquica, o que não é verdade! Há tantos tipos de truques quanto há tipos de distonia, e um só paciente pode apresentar mais de um tipo deles.

Assim, um paciente com blefaroespasmo (leia mais sobre isso aqui) toca as pálpebras superiores, ou coloca uma fita sobre a testa para abrir os olhos. Isso é um truque sensitivo.

Um paciente com distonia cervical (leia mais sobre isso aqui) toca o queixo, toca a cabeça, pressiona a testa ou em alguns casos, somente pensa que está tocando a testa, e a distonia relaxa temporariamente. Isso se deve a inibição neuronal.

Um paciente com distonia de tronco deita ou quando se apoia na parede consegue um alívio temporário da distonia enquanto o estímulo durar.

E o truque sensitivo pode ocorrer em qualquer paciente com distonia, mas pode ser que não ocorra, ou mesmo alguns pacientes que possuíam truques sensitivos podem perdê-los.

Observe algumas fotos de truques sensitivos:

https://online.epocrates.com/data_dx/reg/1096/img/1096-5.jpg
Neste paciente acima, o torcicolo que apresenta melhora tocando suavemente o próprio queixo.

http://img.springerimages.com/Images/ImagesMD/ACN/WATER_ACN0103-09-032B.jpg
A criança acima toca a parte de trás da cabeça para aliviar uma distonia generalizada.

http://ars.els-cdn.com/content/image/1-s2.0-S0072975207830132-gr3.jpg
Este senhor apoia-se na parede para aliviar uma distonia de flexão do tronco (uma das prováveis causas de uma condição chamada de camptocormia)