Este post baseia-se em um artigo publicado por Lincoln MR e Ebers GC na famosa revista Annals of Neurology em setembro de 2012.
O texto refere-se ao provável primeiro caso de EM descrito como tal na literatura. No entanto, também versa sobre o uso de uma terapia na época comum, a eletricidade. Hoje, o uso de eletricidade no tratamento de doenças neurológicas limita-se somente ao uso de estimulação elétrica cerebral e estimulação magnética transcraniana, técnicas conhecidas e disseminadas, mas com indicações e contraindicações bem delimitadas.
Por isso, o blog Neuroinformação adverte: Não brinque nunca com eletricidade ou corrente elétrica. Os riscos à saúde, ou mesmo óbito, não valem qualquer benefício.
Até meados do século XIX, a esclerose múltipla (EM), ou chamada na época esclerose em placas (como ainda é chamada na literatura francesa) era considerada doença rara, e os pacientes que apresentavam os sintomas da doença eram classificados como outras afecções (ou seja, houve vários casos de EM que não foram diagnosticados como EM).
Eu próprio tenho uma tradução brasileira de um livro de neurologia de L. Rimbaud, de 1938, que traz a EM como esclerose em placas ou esclerose pláxica (naquela época, diferente de hoje, a neurologia brasileira era toda de origem francesa; hoje é praticamente anglo-saxônica) como doença comum (refere-se como a segunda causa mais comum, para aquela época, de doença da medula espinhal depois da sífilis) e recebeu atenção em 17 páginas do tratado. Hoje há tratados devotados à enfermidade com mais de 800 páginas (mais de 40 somente com a história da doença).
Deve-se a Jean-Martin Charcot em 1866 a definição da EM como doença distinta. Mas há casos de provável esclerose múltipla descritos em 1824 e 1822 (ou seja, na época da independência do Brasil).
Os autores deste artigo descrevem um caso que não havia sido reconhecido à época, de 1757 (32 anos antes da Revolução Francesa), tendo chamado a atenção de um dos pais da independência americana, e descobridor da eletricidade, Benjamin Franklin.
Em 1757, um médico escocês chamado Robert Whytt recebeu uma carta de um senhor Patrick Brydone sobre o uso miraculoso de eletricidade para curar uma paciente paralítica (daí o porquê do interesse de Franklin, provavelmente). A doença desta mulher de 33 anos é consistente com EM. O artigo foi publicado na revista Philosophical Transactions (veja aqui), muito influente à época, e que existe até hoje (desde 1665).
A paciente chamava-se Elizabeth Foster, e iniciou seus sintomas aos 18 anos de idade (estava com 33 à época), quando teve um quadro febril com alterações respiratórias. Em julho de 1755 (talvez com 31 anos de idade), ela teve novamente o episódio de febre, mas desta vez acompanhado de sintomas neurológicos com paralisia, ora do braço, ora da perna, do lado esquerdo do corpo. Ela ficou assim até 1756, quando começou a melhorar.
Novo ataque logo ocorreu em agosto de 1756, com perda de movimento e sensações do lado esquerdo do corpo, completamente. Acompanhando o quadro, iniciou-se um tremor da cabeça, dificuldades à fala (disartria), perda de visão do lado esquerdo com perda de definição de cores deste lado (acromatopsia), e surtos de frio intenso.
O já mencionado Dr. Brydone sugeriu à paciente um tratamento hoje impensável, o uso de eletricidade para aliviar seus sintomas. A paciente recebeu várias descargas elétricas de grande intensidade (segundo o autor), e após isso sentiu-se melhor, com melhora de algumas sensações do lado esquerdo. A paciente chegou a receber 200 choques em um só dia (algo que na minha opinião é assustador, haja vista a gravidade de um choque elétrico).
O tremor da cabeça acabou melhorando, e ela conseguiu ficar de pé. A paciente continuou a receber os choques por mais alguns dias, tendo no terceiro dia recebido um total de 600 choques. Com novos sintomas após uma gripe, o uso de eletricidade (segundo o autor) resolveu novamente suas queixas. A paciente ficou bem até a última descrição em 9 de janeiro de 1758.
Os autores do artigo afirmam que o caso desta paciente representa o primeiro caso convincente de EM na literatura médica. Apesar disso, há algumas características do caso que são atípicas para EM, como o início após uma doença febril (isso é mais comum em duas outras doenças auto-imunes, a síndrome de Guillain-Barrè e a ADEM, ou encefalomielite disseminada aguda), piora após outra doença febril, piora dos sintomas com o frio (na EM, é mais comum a piora com o calor ou com banhos quentes, ao que chamamos de fenômeno de Uhthoff). Os autores, no entanto, não conseguem explicar a resposta da paciente à eletricidade, algo impensável hoje (pelo risco e perigo de morte com choques elétricos, como é sabido), e sugerem que isso esteja coincidentemente relacionado às melhoras e recaídas da forma mais comum de EM, a forma remitente-recorrente (EMRR).
Os autores sugerem classificar o caso como altamente provável para EM, pela falta de exame físico, pela falta de uma melhor descrição do caso, e é claro, pela inexistência, à época, de exames que confirmassem (ou descartassem) a doença.
Benjamim Franklin reagiu à leitura do artigo à época com uma resposta escrita à revista, ele próprio tendo tratado pacientes paralíticos com eletricidade, observando melhora (segundo Franklin, há mais de 200 anos) do movimento dos membros que receberam o choque, porém efêmera, pois os pacientes após receberem os choques e acharem-nos muito intensos, desistiam do tratamento e voltavam com a paralisia. Não sabemos quais causas de paralisia eram essas, e como o uso de eletricidade poderia melhorá-las.
Desviando um pouco do foco deste post, eletricidade foi usada como terapia extensivamente nos séculos XVIII e XIX, com curas de paralisias tendo sido relatadas (causas das paralisias?). No entanto, a falta de seguimento destes casos nos impede de saber se algum deles teve melhora permanente ou somente temporária.
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Médico Neurologista